domingo, 27 de abril de 2008

Conhecer MANUEL DA FONSECA

As pessoas de quem escrevo são as que houve na minha vida. Gente de família ou conhecida. Nelas me fui descobrindo e sendo eu próprio as vidas que contei. É isso, eu. Até quando escutava a vida de algum desconhecido, logo descobria que esse desconhecido era dois ou três indivíduos que eu já conhecia um dos quais, com o tempo, começava a ser eu. Contar a vida dos outros é interrogar a nossa própria vida. Só o tempo depura. Ficção constrói-se com o que fica do passado. Revive-o.

Manuel da Fonseca, no Prefácio de O Fogo e as Cinzas

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Manuel Lopes da Fonseca nasceu no dia 15 de Outubro de 1911, em Santiago do Cacém, e faleceu no dia 11 de Março de 1993. Fez os estudos secundários em Lisboa, depois dos quais frequentou, por algum tempo, a Escola de Belas-Artes. Dedicou-se desde cedo ao jornalismo, tendo colaborado em várias publicações, de que se destacam as revistas Afinidades, Altitude, Árvore, Vértice e os jornais O Diabo e Diário.
Juntou-se ao grupo de escritores neo-realistas e destacou-se como poeta, contista e romancista.
Estreou-se em livro com a colectânea poética Rosa dos Ventos (1940). Publicou ainda, em poesia, as seguintes obras: Planície (1941), Poemas Completos (1958) e Poemas Dispersos (1958).
Em ficção, publicou: Aldeia Nova (contos, 1942), Cerromaior (romance, 1943), O Fogo e as Cinzas (contos, 1951), Seara de Vento (romance, 1958), Um Anjo no Trapézio (novela e contos, 1968), Tempo de Solidão (contos, 1973), além de um volume de crónicas (Crónicas Algarvias, 1986) e de uma Antologia de Fialho de Almeida (1984).
A obra de Manuel da Fonseca é profundamente marcada pelo espaço físico e humano do Alentejo.
Em íntima relação com a sua produção literária, desenvolveu uma intensa militância social, política e cultural, tendo chegado a ser preso em 1965, por ter integrado o júri que premiou Luuanda, de José Luandino Vieira.

Porque hoje é domingo...

Domingo

Quando chega domingo,
Faço tenção de todas as coisas mais belas
Que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para ao pé das águas
Deitar-se na areia e não pensar…
E há os que vão para o campo
Cheios de grandes sentimentos bucólicos
Porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
“Bom tempo para amanhã”…
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
Pois nesse dia
Aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
São mais generosos.
Um rapaz que era pintor
Não disse nada a ninguém
E escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
Andam pensando por que seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!...
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
Que era o que a família desejava,
Para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
Quando chega domingo,
Vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
E abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou.
Quando ela era ainda muito menina…
Para eu contar isto
É que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
Sei duma hora numa escada
Onde uma velha põe sua neta
E vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
Vendeu a virgindade num domingo
- porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto
Que em toda a História das Guerras.

Partindo deste princípio,
Que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
Eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.

E esta era uma das coisas mais belas
Que um homem podia fazer na vida!

Então,
Todas as raparigas amariam no tempo próprio
E tudo seria natural
Sem mendigos nas ruas nem casas de penhores…
Penso isto, e vou a grandes passadas…
E um domingo parei numa praça
E pus-me a gritar o que sentia,
Mas todos acharam estranhos os meus modos
E estranha a minha voz…
Mariazinha Santos foi para o cinema
E outras menearam as ancas
- ao sol
Como num ritual consagrado a um deus! –
Até chegar ao homem bem-amado entre todos
Com uma nota de cem na mão estendida…

Venha a miséria maior que todas
Secar o último restolho de moral que em mim resta;
E eu fique rude como o deserto
E agreste como o recorte das altas serras:
Venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas
Como um louco maior que a sua loucura…
O rapaz que era pintora
Aconchegou-se sobre a linha férrea
Para que a morte o desfigurasse
E o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
De revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
Vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
E acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
Deixava-se ir para as ruas escuras
Sem nenhum receio.
Uma vez que chovia
Até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos…
E isto porque no momento próprio
Olhava para mim com um propósito tão sereno
Que eu, que dela só desejava o corpo bem feito,
Me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
Que era aquela serenidade
De pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca me pôs obstáculo
Que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontrámo-nos aí pelos cafés…
(ela está sempre com sujeitos decentes)
E quando nos fitamos nos olhos,
Bem lá no fundo dos olhos,
Eu que sou homem nascido
Para fazer as coisas mais heróicas da vida
Viro a cabeça para o lado e digo:
- Rapaz, traz-me um café…
O meu amigo, que era pintor,
Contou-me numa noite de bebedeira:
- Olha,
Quando chega domingo,
Não há nada melhor que ir para o futebol…
E como os olhos se me enevoassem de água,
Continuou com uma voz
Que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
- … no entanto, conheço um homem
Que ia para a beira do rio
E passava um dia inteirinho de domingo,
Segurando uma cana donde caía um fio para a água…
… um dia pescou um peixe,
E nunca mais lá voltou…
… O pior é pensar:
Que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
Como se fosse uma festa?... –
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
Tão rara e certa e maravilhosa
Que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
Amo a vida mais e mais
Que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos
Que vá para o cinema morder o lencinho que sua mão lhe bordou…
E os senhores serenos, acompanhados das mulheres e dos filhos,
Que parem ao sol
E joguem um tostão nas mãos dos pedintes…
E a menina das horas longas e frias
Continue pela mão de sua avó…
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
Ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
Fita-me bem no fundo dos olhos,
Fita-me bem no fundo dos olhos.

Então,
Virá a miséria maior que todas
Secar o último restolho de moral que em mim resta;
E eu ficarei rude como o deserto
E agreste como o recorte das altas serras:
E virá a ânsia do peito para os braços!...
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Domingo que vem,
Eu vou fazer as coisas mais belas
Que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Abril na Arte


Vieira da Silva


João Abel Manta

Vieira da Silva

quarta-feira, 23 de abril de 2008

OS LIVROS


Crio hoje, Dia do Livro e do Direito de Autor, este blogue. Porque os livros nos conduzem por caminhos inesperados, que nos transformam, e fazem da nossa vida um somatório de aventuras maravilhosas.