segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Conhecer JOSÉ RÉGIO


[…]
A fantasia e o sonho são aves que em verdade se podem alimentar das nossas próprias miséria: tal desejo temos de nos não sentirmos miseráveis! Porém o desgosto demasiado premente sufoca-os; escorraça-os a contemplação ou preocupação demasiado imediata de um estado infeliz.
[…]
O desgosto, a raiva e a revolta que actualmente o corrompiam – é que lhe faziam sentir um áspero prazer em ser injusto.
[…]
Lelito não poderia esquivar-se hoje àquela obsessão da injustiça que praticara. A grossaria não estava no seu feitio; mas fora grosseiro (repetia consigo próprio que fora grosseiro, que fora grosseiro…) para com um desconhecido que o procurara, talvez, amigavelmente.
[…]
Em suma: um triste; um ; talvez, em certos aspectos um irmão. E fora esse que ele repelira do modo mais humilhante, mais arrogante, quando, vencendo uma timidez que não podia deixar de o caracterizar, o outro ensaiara aquela tentativa para aproximar as suas duas solidões, remediar a sua comum timidez…
[…]
Certa hesitação cobarde, irracional, que tantas vezes nos faz sacrificar ao comodismo de um momento a paz ou satisfação de vários dias, meses, anos, lhe insinuava que adiasse para outra oportunidade a reparação que decidira oferecer ao ofendido.
[…]
Um pungente arrependimento apertou, como uma garra, a garganta de Lelito. Lelito suspeitou que esse homem tinha uma ferida, e ele lha pisara como sem dar por isso.

José Régio, A Velha Casa I


[…] Lelito descobria com alvoroço – principalmente, com uma espécie de apaixonada gratidão, dirigida nem sabia a quem, a quê, - que outros tinham sofrido de inquietações, tormentos, perplexidades, agonias, enlevos ou desesperos idênticos aos seus; superiores aos seus. Assim, através do espaço e do tempo, se reconhecia como um elo vivo numa cadeia de humanidade angustiada, palpitante, roída pela fome de Absoluto. Capazes, muito capazes eram esses seus grandes irmãos mais velhos de dar fascinante expressão literária quer à sua angústia, quer ao seu fogo! Comparando com tais Obras os papéis em que, à maneira de diário, confissões ou memórias, e aliás com longas interrupções de sentido, ia registando ora as mais amplas ansiedades do seu espírito, (assim as julgava ele, naquela zona interior menos atingida pela convencional modéstia) ora os pequenos factos, puerilmente caricaturados em grande, da sua vida quotidiana, por certo não podia deixar de reconhecer Lelito, ai dele!, a sua desanimadora inferioridade no exprimir-se. Nem por isso deixava de lhes ser comum, a ele e a tais heróis, o fundo dos sentimentos, pensamentos, aspirações. A verdade é que não estava tão só como o julgara! Não era tão anormal como, às vezes, o temia! Outros, admirados por grandes, haviam destapado ao mundo abismos perante quais deixavam de parecer monstruosas as suas pequenas perversões de sensibilidade, ou complicações de sentimentos. Outros haviam descido muito mais fundo os sinistros degraus do Desespero, e subido mais alto, sempre mais alto, as escadas sem suporte do Ideal. Mas se, com os seus poucos anos e uma experiência limitada às paredes duma velha casa, (ou dum colégio do Porto) sentira já coisas tão semelhantes às expressas em romances e poemas célebres…; melhor: se já cá chegara a pensar, embora com as inevitáveis hesitações e deficiências, coisas que, no fundo, eram base sobre que erigiam grandes pensadores as suas esplêndidas arquitecturas de ideias e relações, - é porque pertencia àquela família dos heróis dos romances, dos poemas, dos sistemas…

José Régio, A Velha Casa II


[…] Não há problemas senão os de cada um.
- Há os problemas colectivos da fome e do frio; da doença e da velhice desamparada; da miséria moral; do atraso intelectual; da redução do homem ao animal e ao servil… […] posso dar-te razão noutro ponto: Não há senão os problemas individuais. Os problemas da fome, do frio, da velhice, da infância ou da doença desamparada, do atraso mental, da imoralidade provocada pela miséria, da escravidão ou sufocação do mais fraco sob o dinheiro e o poder… começam por ser problemas individuais; problemas de cada um. Não lhes chamo colectivos senão porque são comuns a muitos indivíduos! Talvez, também, porque podem atormentar a consciência moral doutros indivíduos, os melhores, que assim se apropriam deles. Os que mais concretamente os sofrem, porém, é que nem sempre têm essa consciência…
[…] E deveria aquele bem comum com que desde a adolescência sonhava – aquela vaga, distante Humanidade pela qual desde sempre lutara, e que tantas decepções lhe dava quando tratada de perto – fazê-lo desprezar a felicidade ou infelicidade dos seus mais próximos parentes? Entre tantas outras, uma particularidade tivera ocasião de observar pela vida fora, no seu convívio com muito diversos camaradas, e até de nacionalidades diversas: E era que muitas vezes os homens que mais se empenham – e em verdade lutam – pelo progresso social da humanidade, são incompreensivos e frios, até duros, no contacto directo e individual com os seus semelhantes. E que, pelo contrário, se revelam tolerantes e até generosos, até caridosos, nesse contacto pessoal, muitos dos que, perante o novo ídolo, ou abstracção, da Humanidade, (até perante uma colectividade real) se mostram cépticos, indiferentes, desdenhosos. Não se deixar escorregar nem a uma nem a outra destas limitações, - eis o que sonhava! Sabia, agora, que só nessa largueza do coração e do espírito se poderia verdadeiramente realizar a sua vida. E as decepções não deviam enfraquecê-lo. Os desânimos e tédios de momento (nem que dum momento arrastado longos meses…) não deviam fazê-lo perder a confiança. Tinha de sempre esperar! nem que humanamente desesperado; sempre crer! mesmo quando a sua crença humanamente lhe não aparecesse senão como aparência de crença, - um mero proceder como se cresse… Cada vez mais lhe dizia a experiência que os homens são fracos, mesquinhos, volúveis, loucos, desgraçados, viciosos…, e que talvez, dum certo ponto de vista, nem valha a pena lutar por eles! No fim de contas, não se acomodam com desesperadora facilidade a toda a espécie de vilania? Mas seria razão para não lutar, desde que, nesses pobres seres infelizes, tão ingratos que chegava a aborrecer como importunos, até a odiar e perseguir como inimigos, os seus melhores amigos, se não deixasse de reconhecer qualquer gérmen de ultrapassagem, qualquer luzinha, mesmo débil, que imprescindível era não deixar apagar-se…?



[…]
Os homens como eu, que não podem renunciar a um ideal… que acabam por compreender que não podem… (está claro que falo dum ideal moral) por isso mesmo não podem renunciar a uma vontade de aperfeiçoamento próprio. Sim, têm necessidade de se reverem no espelho do seu ideal… ou da sua consciência… e não ficarem muito descontentes consigo: tão descontentes que desanimem. Isto os pode levar a hipocrisias… confusões… Talvez eu ainda não tenha pensado nisso suficientemente. Mas umas coisas não invalidam as outras, porque tudo em nós é impuro. Não podem esses mesmos homens também alguma coisa fazer pelo bem dos outros? pelo aperfeiçoamento geral?...
- O tal bem dos outros é terem que comer; que vestir; onde morar; e não serem vexados impunemente.

José Régio, A Velha Casa III

domingo, 5 de outubro de 2008

Conhecer JOÃO AGUIAR

Ainda não logrei definir com exactidão o que torna este lugar tão especial. Talvez a disposição das árvores, o modo como as suas cores se misturam sob a luz do Sol, talvez o jogo de sombras, talvez a folhagem – ou, neste momento, os ramos desnudados -, talvez o silêncio, porque é raro ouvir aqui outro som que não seja o das próprias árvores tocadas pelo vento.
Não sei. Se acreditar nos efeitos do geomagnetismo... não, nada de explicações científicas.
Lembro-me da primeira vez que aqui vim. Seguia de carro pela estrada, avistei o cruzeiro, que despertou a minha atenção – nesse tempo eu era um recém-chegado a Vale de Monges. Reduzi a velocidade, acabei por parar, o carro ficou estacionado mais ou menos no sítio onde hoje está. Voltei a olhar para o cruzeiro, que se ergue bizarramente, não à beira da estrada, mas no meio de um terreno coberto de mato rasteiro. E avistei, à distância, em pano de fundo, a mancha verde. Saí do carro sempre a olhar para ela, atravessei a estrada sem deixar de a olhar e caminhei até ao ponto exacto onde me encontro agora. Vim puxado, ou empurrado, por uma força que não sabia se me era exterior ou se era um impulso da minha fantasia que eu inconscientemente vestia com as roupagens da atracção magnética.
Há aqui, pensei então, uma configuração especial que evoca a entrada de um templo: uma espécie de propileu. Mas esta configuração, pensei ainda, não é, ou não é exclusivamente, física. A evocação não está na forma como as árvores se encontram dispostas nem nos contornos e acidentes do terreno. Não é a imagem concreta das coisas, é a imagem que as coisas desenham dentro de mim.
Hoje, após tantas visitas solitárias a este lugar, hoje penso o mesmo. Talvez por vergonha, não mais voltei a fazer o que então fiz. Ajoelhei-me primeiro, depois prostrei-me de olhos fechados, as mãos coladas à terra, e rezei – digo rezei porque todo o discurso dirigido a Deus, ainda que o nome não seja pronunciado, deve ser considerado uma oração.
Não voltei a fazê-lo nem o poderia fazer neste momento sem, prosaicamente, ficar encharcado. Isso é pouco importante, porém… O lugar conserva o mesmo encanto, o silêncio feito de murmúrios é o mesmo, o mesmo é o verde luminoso e o movimento vagaroso, solene, da ramaria.

Respiro fundo, caminho devagar por entre as árvores enquanto sinto que aqueles músculos sempre tensos – nos ombros, nos braços, no ventre, em muitos outros pontos do meu corpo – se distendem gradualmente. A sensação de alívio é tão forte que provoca em mim um efeito semelhante ao da vertigem.
Um pouco mais adiante começa o pinhal – também ele não é um pinhal qualquer, antes é a nave do templo, o ponto central do espaço mágico. Julgo, ou melhor, estou certo de que é o centro da imutabilidade de Vale de Monges, um pequeno mundo de três quilómetros de largura que as águas do rio Mansil rasgaram milhões de anos antes de existirem a Aldeia do Retiro e a minha Casa da Tapada e os monges que lhe deram o nome; este vale misterioso, porque resiste às mutações do admirável mundo novo que nos bate à porta com grandes e obscenas punhadas. Estou certo, não me perguntem porquê, poderia jurar que essa estranha força de resistência emana daqui.
Os pinheiros – há-os mansos e bravos – são enormes, de troncos grossos. Mas a altura que atingiram torna-os esguios, bem proporcionados, e um jogo de luz e sombras dá-lhes a aparência de colunas. Os ramos mais altos tocam-se de árvore para árvore com um efeito visual semelhante à forma das ogivas góticas e as copas dos pinheiros mansos uniram-se para formar uma vasta abóbada.
Por isso eu chamo a este lugar a Catedral Verde. É um nome que nunca pronunciei em voz alta porque o meu sentido do ridículo mo impede. Em todo o planeta, não haverá mais que uma ou duas pessoas diante de quem eu falaria na catedral verde e, mesmo junto dessas, não o fiz até hoje. Contudo, em conversa íntima comigo mesmo, posso mandar o ridículo às urtigas. Esta é a minha catedral verde e o centro, o umbigo, a alma de Vale de Monges.
Estive muito tempo sem vir aqui, um ano, talvez, e o reencontro acorda vários sentimentos, dos quais o mais forte é o remorso, ou antes, a auto-recriminação. Por ter permitido que as tensões e o ruído exterior do mundo me fizessem adormecer, distraído e neurótico, e assim abandonei a demanda do meu Graal particular. Aquilo a que eu chamo (também nunca, ou raramente, em voz alta) a busca da santidade.
Era uma prioridade absoluta – e foi-se degradando até ao nível das pequenas dores recorrentes que nos incomodam de vez em quando a partir de uma certa idade e de um certo cansaço interior. Era o meu programa de vida e deixei-o decair até ao grau de ocupação de curtos tempos livres.
...Não. Estou a ceder ao vício da dramatização, da tragedização. A realidade não é assim tão sombria porque esta demanda continua a ser, e é-o desde há muito, uma obsessão constante, mesmo quando apenas latente. Porém, de que serve ela, se não for mais do que isso, se eu não der o primeiro passo?
Em que consiste exactamente esse primeiro passo, eis a grande questão. Talvez seja, sem mais, olhar à minha volta, sentir em vez de raciocinar, ouvir em vez de falar – ouvir a voz do silêncio de que falam místicos e iniciados.
(Caminho muito devagar por entre as colunas da catedral. Se quiser manter esta imagem terei de admitir que a brisa, ao tocar as agulhas dos pinheiros, será um órgão e que os salmos são cantados por um coro de pássaros, mas não será isto excessivo, barroco, mesmo – ridículo? Por outro lado, como estou só, o ridículo não existe. O ridículo só existe quando alguém nos vê)
...Ou talvez seja o contrário da simplicidade, talvez seja um multiplicar de gestos e de iniciativas. Se tomar o ioga como referência, talvez seja associar o hatha ioga à meditação.
...Ou praticar o jnana ioga, o ioga do conhecimento e da intuição, ou o karma ioga, o da acção – das boas acções, por muito que esta expressão soe a falso no tempo corrente.
...Ou, muito mais primitivamente: meditar, estudar as incursões científicas do domínio do paranormal no nosso domínio, ler todos os filósofos, todos os pensadores, todos os doutrinadores, conhecer todas as religiões.
(Será mesmo verdade que o ridículo só existe quando alguém nos vê?)
O que é surpreendente é que esta enxurrada de ideias não me desorienta nem me irrita. Aqui, neste momento, sinto apenas que tudo isto há-de resolver-se de algum modo, que aquilo a que eu chamo a busca da santidade, o meu Graal particular, está ao meu alcance, não sei como nem quando. E que hei-de ser capaz de construir dentro de mim aquele mundo-sonho do adolescente ressuscitado, onde os heróis podem cavalgar sobre pradarias limpas e em florestas densas regadas por chuvas tépidas.
É este o efeito que sobre mim exerce a catedral verde de Vale de Monges.
Fecho os olhos para sentir melhor a vibração deliciosa que me sacode. Respiro fundo, bem fundo, para me encher com o ar perfumado de pinheiros, aquecido pelo Sol.


João Aguiar, A Catedral Verde