quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Conhecer CARLOS DE OLIVEIRA

Óleo de Mário Dionísio

Levou o resto da manhã às voltas com a ideia e tanto lhe mexeu que a deixou a sangrar: o sangue farto das feridas recentes. Espantava o sono com goladas duma garrafa de aguardente que escondia no cofre. Pouco a pouco, ressuscitava nele o homem implacável que a intensa amargura dalguns dias arrancava ao desespero a que descia, como se o vento desse na poeira da sua consciência desmoronada e as pedras limpas se reerguessem umas sobre as outras. Nesses acessos tornava-se rígido, cruel. Orelhas surdas a lágrimas ou rogos. Por exemplo, saltava às suas terras, ao pegar do trabalho, e camponês que não chegasse a horas já sabia, a jorna descontada ou despedido pura e simplesmente. A indiferença dum capataz na roça. No geral, porém, semelhante crueza de carácter era sol de pouca dura. Anoitecia depressa para longas insónias de remorso e ave-marias. Bebeu outra golada de aguardente. Por dentro, no recesso da alma, o homem voluntarioso e efémero, sem escrúpulos, alcançava entretanto a estatura dum gigante. Olhava então com piedade para as próprias fraquezas, prometia à força momentânea: nunca mais, nunca mais. Em todo o caso, alguma coisa de dúbio passava da alma velha à alma nova. O que é, transformava-se o medo em cálculo, o terror religioso cedia o passo a uma crença firme e sem complicações na generosidade divina., que existe para tudo cobrir com o seu manto de perdão. E o remorso lá estava, mas encaroçado. Um quisto à margem do organismo em que se enconcha. À génese destas grandes transformações não era estranho o espectro da miséria que o pai lhe metera pelos olhos apavorados desde a infância, porque muita da fereza que o empedernia, da ganância cíclica que o empolgava, vinha daí, dessa longa lição individualista de que o homem é o lobo do homem e, portanto, entre devorar e ser devorado, o melhor é ir aguçando os dentes à cautela. Desta vez o ânimo impiedoso irrompia da sombra para saltar sobre o ruivo, que encarnava, por uma necessidade premente de fixar a angústia, o bode expiatório, o inimigo, a própria angústia. De semelhante ideia, mexida e remexida, é que o sangue brotara, e com tal ímpeto que o sentia correr pelo corpo todo, passar de simples razão mental a sustento do coração, a seiva que tornava a existência possível, e também a morte, se a fonte donde manava estiasse de repente. Daí que se pusesse a chamar o marçano aos berros, para lhe ordenar com a ânsia de quem empenha tudo na cartada:
- Dá-me um salto à olaria do cego. Que venha cá. Que preciso de lhe falar urgentemente.

Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva