domingo, 1 de novembro de 2009

FIÓDOR DOSTOIÉVSKI

1821-1881
Estavam numa discussão séria, e mesmo apaixonada, sobre um jantar de despedida que queriam dar, já no dia seguinte, ao seu companheiro Zverkov que, por razões da sua carreira de oficial, era obrigado a partir para longe, na província. Também Monsieur Zverkov tinha sido meu companheiro de escola. Eu dedicara-me a detestá-lo sobretudo nas últimas classes. Nas primeiras classes, ele era um ai-jesus de rapazinho, muito vivo e catita, que toda a gente adorava. Há que dizer que eu já o detestava nas classes da primária, exactamente porque ele era um rapazinho muito catita e muito vivo. Os estudos dele sempre foram medíocres, e quanto mais crescíamos mais isso piorava; mesmo assim conseguiu sair da escola bem classificado, porque tinha uma protecção. No correr do último ano de escola ele tinha recebido uma herança, duzentas almas[1] , e como nós éramos pobres, quase todos, ele punha-se com fanfarronices, mesmo à nossa frente. Era um ordinário no mais alto grau, porém simpático, mesmo a fanfarronar. Entre nós, apesar das formas exteriores, fantásticas e oratórias que a honra e o amor-próprio assumiam, toda a gente, com raras excepções, chegava a lamber as botas a esse Zverkov, por mais que ele bazofiasse. Não era por interesse que lhe lambiam as botas, era assim, porque era um homem favorecido pelos dons da natureza. Além de que Zverkov era quase unanimemente visto, entre nós, como um especialista no domínio da graça e das boas maneiras. Este último ponto enraivecia-me particularmente. Eu odiava o tom da sua voz, abrupto, convencido, a adoração que tinha pelas suas próprias saídas que eram todas realmente estúpidas, apesar de não ter papas na língua; odiava a cara dele, bonita e parvinha (mas que eu trocava de boa vontade pela minha inteligente) e todas as suas maneiras desenvoltas de oficial dos anos quarenta. Odiava o que ele contava dos seus futuros êxitos junto das mulheres (não ousava iniciar-se nelas antes de ter os seus galões de oficial – o que esperava com impaciência) e como, a cada instante, iria bater-se em duelo. Lembro-me de como eu, que ficava sempre calado, me peguei com ele quando o ouvi falar com os seus companheiros, nos intervalos das aulas, da “fruta” que iria comer e, aquecendo progressivamente, como um cachorro ao sol, acabou por se sair com essa de que não havia de lhe escapar nenhuma rapariga da sua aldeia, que esse era o seu droit du seigneur, e que aos labregos que ousassem protestar havia de zurzi-los ele mesmo a chicote, do primeiro ao último, e que lhes faria pagar o tributo pelo dobro, a esses grandes pacóvios de barbas. As nossas pestezinhas aplaudiam-no, mas eu atirei-me a ele, não por pena das camponesas e dos pais, mas porque sim, porque eles aplaudiam esse miserável. Eu tinha dado conta dele, mas o Zverkov, por mais idiota que fosse, continuava sempre mordente e alegre, por isso tinha conseguido desenvencilhar-se da situação pela brincadeira, sem pensar nisso, de sorriso nos lábios. Eu, raivosamente, com desprezo, não lhe respondia. Pelo fim do curso, ele tentou aproximar-se de mim; eu não protestei, sentia-me lisonjeado; mas logo nos separámos, naturalmente. Depois ouvi falar dos seus êxitos de tenente da guarda – dizia-se que ele fazia vida de grande farra. Depois chegaram-me aos ouvidos outros zunzuns, sobre promoções na carreira dele. Na rua, Zverkov tinha deixado de me saudar, eu desconfiava que ele teria medo de se comprometer ao trocar cumprimentos com alguém tão desprezível como eu. Outra vez vi-o no teatro, nos terceiros camarotes, ostentando já os cordões. Pavoneava-se e meneava-se todo frente às filhas de um general muito velho. Em três anos tivera tempo de se desleixar, embora continuando sempre tão hábil e tão bonito como dantes; tinha, como direi?, ficado opado, tinha engordado; via-se que quando tivesse trinta anos não passaria de um saco de banha. Era, portanto, a este Zverkov de partida que os nossos companheiros se preparavam para honrar com um jantar. Nesses três anos eles tinham-se, por conseguinte, encontrado sempre com ele, apesar do facto de eles, intimamente, se sentirem seus inferiores – estou convencido disso.


Fiódor Dostoiévski, Por Motivo da Neve Húmida,
in Cadernos do Subterrâneo


[1] Uma “alma” é um servo da gleba, do sexo masculino, adstrito a uma aldeia ou a uma propriedade, juntamente com a sua família, e pertença de determinado senhor.