quarta-feira, 25 de abril de 2012

segunda-feira, 26 de março de 2012

Conhecer ANTONIO TABUCCHI

Antero de Quental. Uma vida


Antero chegou como o último de nove filhos a uma grande família dos Açores que possuía pastagens e laranjais, e a sua infância conheceu o austero e frugal bem-estar dos proprietários ilhéus. Teve entre os seus antepassados um astrónomo e um místico cujos retratos, juntamente com os do avô, estavam pendurados nas paredes de uma sala de estar escura que cheirava a cânfora. O seu avô chamava-se André da Ponte Quental e tinha conhecido o exílio e o cárcere por ter participado na primeira revolução liberal de 1820. Isto contava-lhe o pai, um homem simpático que gostava de cavalos e que tinha combatido na batalha batido na batalha do Mindelo do Mindelo contra os absolutistas.
Os seus primeiros anos tiveram como companhia os potrozinhos malhados e as cantilenas arcaicas de criadas que vinham dos montes de S. Miguel, onde as aldeias são de lava e têm nomes como Caldeiras e Pico de Ferro. Era uma criança calma e pálida, de cabelos arruivados e de olhos tão claros que por vezes pareciam transparentes. Passava as manhãs no pátio de uma grande casa de uma grande casa onde as mulheres guardavam as chaves dos armários e as janelas tinham cortinas de renda grossa. Ele corria e dava pequenos gritos alegres, e era feliz. Gostava muito do seu irmão mais velho, a quem uma silenciosa loucura ofuscava durante longos períodos uma inteligência rara e bizarra; com ele inventou um jogo a que chamavam O Céu e a Terra em que as peças eram seixos e conchas, e que jogavam numa espécie de tabuleiro de xadrez circular desenhado na poeira.
Quando o menino chegou à idade de estudar, o pai chamou o poeta António Feliciano de Castilho e confiou-lhe a sua instrução. Castilho era considerado então um grande poeta, talvez por causa das suas traduções de Ovídio e de Goethe, e talvez também pela sua cegueira desventurada que, por vezes, dava aos seus versos um tom de vate muito amado pelos românticos. Na realidade era um erudito irascível e austero que privilegiava a retórica e a gramática. Com ele o pequeno Antero aprendeu latim, alemão e métrica. E com estes estudos chegou à adolescência.

Ponta Delgada.Rua do Castilho.Casa onde nasceu Antero de Quental

Uma noite de Verão em que completara o seu décimo quinto aniversário, Antero acordou de sobressalto e sentiu que uma força o impelia a ir até ao mar. Era uma noite calma e a lua estava em quarto crescente. Toda a casa dormia e o vento enfunava as cortinas de renda. Vestiu-se em silêncio e desceu até aos rochedos. Sentou-se num penedo e olhou para o céu tentando adivinhar o que o poderia ter levado até àquele lugar. O mar estava calmo e respirava como se dormisse, e a noite era igual a todas as outras noites. Só que ele sentia uma grande inquietação, como que uma ansiedade que lhe apertava o coração. Naquele momento ouviu um bramido surdo que vinha da terra, a lua fez-se de sangue e o mar inchou como um ventre enorme e bateu contra as rochas. A terra tremeu e as árvores vergaram-se com a força de um vento impetuoso. Atónito, Antero correu para casa e encontrou a família reunida no pátio; mas o perigo tinha passado e nas mulheres o pudor das vestes nocturnas já era superior ao susto que tinham apanhado. Antes de voltar para a cama, Antero pegou num bocado de papel e escreveu à pressa, sem conseguir controlar-se, algumas palavras. E enquanto escrevia deu-se conta de que as palavras se iam ordenando na folha quase sozinhas, segundo a combinação métrica do soneto: e ele dedicou-o, em latim, ao deus ignoto que lho estava a inspirar. Nessa noite dormiu serenamente e de madrugada sonhou com um pequeno macaco de focinho irónico e triste que lhe estendia um bilhete. Ele lia-o e percebia um segredo que não era permitido a ninguém saber e que só o animal conhecia.
Estava a ficar um homem. Estudava astronomia e geometria, deixou-se seduzir pela hipótese cosmogónica de Laplace, pela ideia da unidade das forças físicas e pela concepção matemática do Espaço. À noite escrevia os seus pequenos mecanismos misteriosos e abstractos, nos quais traduzia em palavras a sua ideia da máquina cósmica. Já se resignara ao sonho do pequeno macaco de focinho irónico e triste e quase ficava admirado nas noites em que ele o não visitava.
Quando chegou à idade dos estudos universitários partiu para Coimbra, como exigia a tradição familiar, e anunciou que tinha chegado o momento de abandonar o estudo das leis cósmicas e de se dedicar às dos homens. Tornara-se um jovem alto e robusto, com uma barba loura que lhe dava um aspecto majestoso, quase altivo. Em Coimbra conheceu o amor, leu Michelet e Proudhon e, em vez das leis que aplicavam a justiça de então, entusiasmou-se com a ideia de uma justiça nova que falava da igualdade e da dignidade dos homens. Seguiu esta ideia com a paixão que lhe vinha dos seus antepassados ilhéus, e também com a razão do homem que era, porque estava convencido de que a justiça e a igualdade participavam da geometria do mundo. Na forma fechada e perfeita do soneto escreveu o ardor que o dominava e a sua ânsia de verdade, partiu para Paris e fez-se tipógrafo, como outro qualquer poderia ir para monge, porque queria conhecer a fadiga do corpo e a realidade concreta das ferramentas. Depois da França, partiu para Inglaterra e para os Estados Unidos, viveu em Nova Iorque e Halifax, para conhecer as novas metrópoles que o homem estava a construir e os vários modos de viver nelas. Quando regressou a Portugal tinha-se tornado socialista. Fundou a associação nacional dos trabalhadores, viajou e fez prosélitos, viveu com os camponeses, passou pelas suas ilhas como um tribuno de discurso ardente, conheceu a arrogância dos poderosos, as adulações dos astuciosos, a cobardia dos servos. Animava-o o desdém, e escreveu sonetos de sarcasmo e de furor. Conheceu também a traição de alguns camaradas e a ambígua alquimia de quem consegue conjugar o interesse comum com o seu próprio interesse.


Loja de Benjamin Ferin, onde comprou a arma

Compreendeu que tinha de deixar a outros, mais hábeis do que ele, a tarefa de prosseguir a obra que ele iniciara, quase como se ela já não lhe pertencesse. O momento era de homens práticos, e ele não o era: e isso deu-lhe um sentimento de desolação, como uma criança que perde a inocência e descobre improvisamente a vulgaridade do mundo. Não tinha ainda cinquenta anos e o seu rosto estava muito marcado. Os olhos tinham-se-lhe encovado e a barba estava a embranquecer. Começou a sofrer de insónias e a dar gritos sufocados nos raros momentos de repouso. Às vezes sentia que as suas palavras não lhe pertenciam e frequentemente surpreendia-se a falar sozinho como se fosse um outro que falasse com ele. Um médico de Paris diagnosticou-lhe histeria e prescreveu-lhe um tratamento eléctrico. Antero anotou que sofria de infinito e talvez fosse uma doença mais plausível para ele. Talvez estivesse apenas cansado da forma transitória e imperfeita do ideal e da paixão, e a sua ansiedade encaminhava-se já para uma outra forma geométrica. Nos seus escritos começou a aparecer a palavra Nada, que lhe parecia a forma mais perfeita de perfeição. Ia já a entrar no seu quadragésimo nono e regressou à sua ilha.


Na manhã do dia 11 de Setembro de 1891, saiu da sua casa de Ponta Delgada, desceu a pé a íngreme rua cheia de sombra até à Igreja Matriz e entrou numa pequena espingardaria da esquina. Vestia um fato preto e sobre a camisa branca levava uma gravata segurada com um alfinete com uma concha. O proprietário era um homem amável e gordo que gostava de cães e de gravuras antigas. Havia um ventilador de latão que girava lentamente no tecto. O proprietário mostrou ao cliente uma bela gravura seiscentista, comprada recentemente, que representava uma matilha de cães perseguindo um veado. O velho lojista tinha sido amigo de seu pai, e Antero lembrou-lhe que, em menino, os dois homens o levavam com eles à feira de Caloura, onde havia os cavalos mais belos de S. Miguel. Ficaram longamente a falar de cães e de cavalos, depois Antero comprou um pequeno revólver. Quando saiu da loja o campanário da Matriz estava a bater as onze. Ele percorreu lentamente toda a beira-mar até à capitania do porto e deteve-se longamente no cais a olhar para os veleiros. Depois atravessou a zona ribeirinha e entrou na praça da Esperança, rodeada de magros plátanos. O sol era feroz e tudo estava branco. A praça estava deserta àquela hora por causa do enorme calor. Um burro triste, preso à argola de uma parede, deixava pender a cabeça. Enquanto atravessava a praça, Antero ouviu uma música. Parou e voltou-se. Na esquina oposta, à sombra de um plátano, estava um vagabundo a tocar um realejo. O vagabundo fez-lhe sinal e Antero dirigiu-se para ele. Era um cigano magro e tinha um macaco ao ombro. Era um pequeno ser de focinho irónico e triste e vestia uma farda vermelha com botões dourados. Antero reconheceu o macaco do seu sonho e compreendeu quem era. O animal estendeu-lhe a minúscula mão negra e Antero deixou cair nela uma moeda. Em troca o animal tirou à sorte um papelinho colorido entre os muitos que o cigano tinha enfiados no chapéu e deu-lho. Antero pegou nele e leu-o. Atravessou a praça e sentou-se num banco junto do fresco muro do convento da Esperança, onde havia uma âncora azul pintada na parede. Tirou o revólver do bolso, levou-o à boca e puxou o gatilho. Teve um momento de espanto ao continuar a ver a praça, as árvores, o cintilar do mar e o cigano que tocava o realejo. Sentiu um frio morno que lhe escorria pelo pescoço. Accionou o mecanismo do revólver e fez fogo pela segunda vez. Então o cigano desapareceu e os sinos da Matriz começaram a bater o meio-dia.

António Tabucchi [Pisa, 23.Setembro.1943-Lisboa, 25.Março.2012]




sábado, 19 de novembro de 2011

O Dr. Bruno


Desta vez fora convidado o Dr. Bruno, grande especialista de olhos em Lisboa. E em jantares, piqueniques, passeios de automóvel e a cavalo, bailes e caçadas, duas semanas voavam…
[…]
Já na casa dos quarenta, tinha ainda um ar jovem, cuidadosamente cultivado. Era uma destas naturezas ricas e pobres ao mesmo tempo, movidas por altas ambições que nunca realizam. Almas que põem tanta avidez no que desejam, tanta inquietação no que procuram, que tudo lhes foge das mãos no momento crucial. Se pudesse ser contada por miúdos, a sua vida daria uma crónica dolorosa de frustrações. Contudo, nenhuma outra mais rica de tenacidade, inteligência e audácia. Num faro quase infalível, antevia a hora e o lugar dos sucessos. E apresentava-se, numa disponibilidade que o tornava credor do maior quinhão do bolo. E, quando o êxito parecia certo, conseguido, a sofreguidão do salto afugentava a presa.
Desta vez viera também guiado por esse instinto adivinho. Tivera, casualmente, conhecimento da existência na família de uma figura complicada de mulher [Catarina], nova, solteira, bonita e poetisa. A princípio não tomara a sério o último predicado da moça.
[…]
Mas depois o Dr. Bruno leu o nome dela num jornal literário, ouviu rasgados e autorizados elogios à sua arte, e, então, a ironia transformou-se em curiosidade, e a curiosidade em desejo de possuir. Bonita e rica significava muito, mas não era o bastante para a sua angústia de perseguidor de miragens. Precisava de um elemento mais, esse com autenticidade de dom. E se realmente se tratava de uma pessoa excepcional, artista ainda por cima, por que não fazer um esforço?
Infelizmente, a ave rara só chegava no dia seguinte, atrasada como sempre.
[…]
Só quando o nome de Guiomar surgiu entre duas saraivadas de adjectivos – de um lado os homens a gabarem-lhe a elegância e a simpatia, do outro as mulheres a chamarem-lhe embirrenta e pretensiosa -, se mostrou interessado.
[…]
Atirava as perguntas com ar negligente, num tom despreocupado, como que por desfastio. A simples notícia de que tinha a dois passos de si uma rapariga de quem se falava com tal discrepância, além de lhe espicaçar os brios de conquistador, fizera nascer no seu espírito, impenitente empreendedor de aventuras, mas experimentada vítima de sucessivos fracassos, o desejo de a conhecer, de a ter de reserva contra Catarina, de preparar uma espécie de porta de traição. Escusava, contudo, de mostrar o jogo.
[…]
O Dr. Bruno, porém, necessitava de entrar naquela vida por alguma porta. Catarina começava a enervá-lo, a criar-lhe um estado de inibição que o irritava. Pela primeira vez encontrava uma natureza que se lhe opunha de antemão, só a existir, numa espécie de antítese humana. E tentava rasgar uma fenda na muralha.
[…]
- Sou por temperamento e formação um homem objectivo… - Acredito pouco numa arte subjectiva.
- Toda a arte o é…
- Interessa-lhe, exactamente porque só entra em linha de conta com o seu egoísmo de criatura privilegiada, o que é lamentável.
Não punha sombra de sinceridade no que dizia. Era uma construção de momento, para enredar a corça esquiva. Em circunstâncias diferentes poderia defender o contrário com a mesma desenvoltura. Tanto se lhe dava dos poemas de Catarina como da cabeleira do dono da casa. Queria, sim, a mulher rendida a seus pés. Quando valorizava nela a condição de criadora, vislumbrava apenas a própria vaidade enfeitada com mais algumas penas. A beleza pura não lhe tocava a alma.
- Talvez tenha razão. Mas, que quer?
- Que acorde, ora essa!
O fio da meada, por mais que se esforçasse, fugia-lhe das mãos nervosas. Encontrava-se pela primeira vez diante de uma irredutibilidade. O adversário não argumentava, mal se defendia e, contudo, cada vez se lhe avantajava mais, como um fantasma que tirasse a força do próprio absurdo mágico do existir. As palavras que lhe dirigia pareciam bater de encontro a uma porta fingida. Por detrás, não havia ressonância.
[…]
…tentou recuperar a calma perdida, o domínio de si. O caminho não era aquele, evidentemente, abrupto, áspero e raivoso. A razão estava farta de o saber. Mas descobrir o outro, o verdadeiro?
Lá no íntimo, uma voz que não queria ouvir segredava-lhe desde a primeira hora que não conquistaria a rapariga.
[…]
E uma indignação impotente, paralela a um estranho sentimento de solidão irremediável, ameaçava submergir o hóspede. Não conseguia sintonizar-se com Catarina. Pelo contrário: cada vez a sentia mais distante.
[….]
O resto era Guiomar, que lhe aparecia no pensamento como uma possível tábua de salvação no jogo sentimental que iniciara. O coração nunca lhe pedira afectos verdadeiros. À sombra deles procurava apenas realizar não sabia ao certo que recôndita aspiração. Desde criança que lutava por esse impossível sem nome na sua própria consciência, e que se resumia numa imperiosa necessidade de afirmação e domínio. Se triunfasse algum dia, é possível que ficasse sem saber como utilizar a conquista. Enfadado e desiludido, acabaria por deixar cair, de qualquer modo, o troféu que com tanta veemência desejara. Mas falhara sistematicamente, e só não desanimava porque depois de cada fracasso, logo nova empresa o solicitava, criada pela sua ambição constante e versátil. E aí partia ele insofrido em busca dessa quimera, com toda a persistência passada. Fino observador, vira num relance, à chegada de Catarina, que ali o combate seria duro. Em vão procurava as pontas do invisível vincilho que junta as pessoas afins, que as faz solidárias mesmo quando o não querem ser. A linguagem de cada um dizia coisas opostas. Regiam-se por leis diversas.
[…]
[O orgulho ferido] obrigara-o a permanecer ali atento à melodia que lhe arranhava a alma como um silício. Por mais que fizesse, não conseguia sintonizar-se com o espírito criador que arrebatava os outros. A música em vez de o libertar, humilhava-o.
- É extraordinário, não é? – perguntou Raul a voltar o disco, sem admitir sequer a negativa.
- Sim, de facto. Se bem que eu seja por mundos mais positivos, mais lógicos…
- Não há nada mais lógico do que uma grande obra musical. Um largo de Haendel, por exemplo, é como um templo grego, de rigor e simetria…
- Claro. Claro.
Novamente a grafonola começou a rodar e novamente o maldito Bach encheu a sala da lógica que ele não entendia. Era uma tocata, executada a órgão, pungente e alada.
- Eu, este Bach, francamente! É bom, sem dúvida. Mas confesso…
Os íngremes degraus de uma escada erguida da humildade humana a um céu cristão de bem-aventurança, causavam-lhe tonturas. A transcendência nele, não subia, descia. Reduzia-se a um pragmatismo de utilidade pessoal, a sua, apenas mascarado muito ligeiramente, conforme as circunstâncias. Uma força que o arrastasse sem apelo e o conduzisse, cego, através de mundos onde nada tinha a fazer senão entregar-se, ditoso por já não ser mortal, ou sê-lo purificadamente, acicatava-lhe apenas o instinto de defesa. E fechava-se como um ouriço, hostil a cada nota sedutora. “Conversas com Deus consigo próprio antes da Criação”, chamara Goethe àquela música, isenta de sentimentos mesquinhos ou violentos. E nem mesmo por instantes ele podia renunciar às misérias da sua íntima natureza.
- Não gosta?!
- Gosto. Isto é…
Ia a atacar o génio só com o desplante dos audaciosos, sem poder mais, quando felizmente as mãos de Catarina, piedosas ou enfadadas, fecharam o aparelho.
[…]
Ao almoço, no dia seguinte, renovou a tentativa. Nada! Inábil e precipitado, só conseguira espantar a caça. Nem boa figura fizera. Reconhecia isso. De resto, até um cego via a triste realidade: Catarina fugira-lhe ainda mais. E como não podia viver num clima de derrota, a ideia de Guiomar surgiu-lhe definitivamente, nítida e vingadora, num aberto horizonte de triunfo.
[…]
Os amores do Dr. Bruno e de Guiomar começaram nessa noite. O médico não se comprometeu. Disse e fez apenas o bastante para encandear a rapariga, sem descer do tablado onde representava. Depois do entremez com Catarina – tão absurdamente falhado -, convinha-lhe não actuar ingenuamente, e apresentar a vítima já estrangulada à plateia boquiaberta. Por isso, a táctica consistia no realce de afinidades que ajudassem a papalva a saltar obstáculos embaraçosos, ou então num rosário de atenções que fizessem na sala o efeito de votos positivos numa eleição.
Lisonjeada e rendida a uma superioridade que firmava os alicerces na palavra fluente e no atrevimento intelectual, a coitada, que atravessava uma crise de indecisão, de pousio emocional, escancarou a alma de mulher à magnética impostura do actor.
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Miguel Torga, Vindima







domingo, 25 de abril de 2010

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

domingo, 1 de novembro de 2009

FIÓDOR DOSTOIÉVSKI

1821-1881
Estavam numa discussão séria, e mesmo apaixonada, sobre um jantar de despedida que queriam dar, já no dia seguinte, ao seu companheiro Zverkov que, por razões da sua carreira de oficial, era obrigado a partir para longe, na província. Também Monsieur Zverkov tinha sido meu companheiro de escola. Eu dedicara-me a detestá-lo sobretudo nas últimas classes. Nas primeiras classes, ele era um ai-jesus de rapazinho, muito vivo e catita, que toda a gente adorava. Há que dizer que eu já o detestava nas classes da primária, exactamente porque ele era um rapazinho muito catita e muito vivo. Os estudos dele sempre foram medíocres, e quanto mais crescíamos mais isso piorava; mesmo assim conseguiu sair da escola bem classificado, porque tinha uma protecção. No correr do último ano de escola ele tinha recebido uma herança, duzentas almas[1] , e como nós éramos pobres, quase todos, ele punha-se com fanfarronices, mesmo à nossa frente. Era um ordinário no mais alto grau, porém simpático, mesmo a fanfarronar. Entre nós, apesar das formas exteriores, fantásticas e oratórias que a honra e o amor-próprio assumiam, toda a gente, com raras excepções, chegava a lamber as botas a esse Zverkov, por mais que ele bazofiasse. Não era por interesse que lhe lambiam as botas, era assim, porque era um homem favorecido pelos dons da natureza. Além de que Zverkov era quase unanimemente visto, entre nós, como um especialista no domínio da graça e das boas maneiras. Este último ponto enraivecia-me particularmente. Eu odiava o tom da sua voz, abrupto, convencido, a adoração que tinha pelas suas próprias saídas que eram todas realmente estúpidas, apesar de não ter papas na língua; odiava a cara dele, bonita e parvinha (mas que eu trocava de boa vontade pela minha inteligente) e todas as suas maneiras desenvoltas de oficial dos anos quarenta. Odiava o que ele contava dos seus futuros êxitos junto das mulheres (não ousava iniciar-se nelas antes de ter os seus galões de oficial – o que esperava com impaciência) e como, a cada instante, iria bater-se em duelo. Lembro-me de como eu, que ficava sempre calado, me peguei com ele quando o ouvi falar com os seus companheiros, nos intervalos das aulas, da “fruta” que iria comer e, aquecendo progressivamente, como um cachorro ao sol, acabou por se sair com essa de que não havia de lhe escapar nenhuma rapariga da sua aldeia, que esse era o seu droit du seigneur, e que aos labregos que ousassem protestar havia de zurzi-los ele mesmo a chicote, do primeiro ao último, e que lhes faria pagar o tributo pelo dobro, a esses grandes pacóvios de barbas. As nossas pestezinhas aplaudiam-no, mas eu atirei-me a ele, não por pena das camponesas e dos pais, mas porque sim, porque eles aplaudiam esse miserável. Eu tinha dado conta dele, mas o Zverkov, por mais idiota que fosse, continuava sempre mordente e alegre, por isso tinha conseguido desenvencilhar-se da situação pela brincadeira, sem pensar nisso, de sorriso nos lábios. Eu, raivosamente, com desprezo, não lhe respondia. Pelo fim do curso, ele tentou aproximar-se de mim; eu não protestei, sentia-me lisonjeado; mas logo nos separámos, naturalmente. Depois ouvi falar dos seus êxitos de tenente da guarda – dizia-se que ele fazia vida de grande farra. Depois chegaram-me aos ouvidos outros zunzuns, sobre promoções na carreira dele. Na rua, Zverkov tinha deixado de me saudar, eu desconfiava que ele teria medo de se comprometer ao trocar cumprimentos com alguém tão desprezível como eu. Outra vez vi-o no teatro, nos terceiros camarotes, ostentando já os cordões. Pavoneava-se e meneava-se todo frente às filhas de um general muito velho. Em três anos tivera tempo de se desleixar, embora continuando sempre tão hábil e tão bonito como dantes; tinha, como direi?, ficado opado, tinha engordado; via-se que quando tivesse trinta anos não passaria de um saco de banha. Era, portanto, a este Zverkov de partida que os nossos companheiros se preparavam para honrar com um jantar. Nesses três anos eles tinham-se, por conseguinte, encontrado sempre com ele, apesar do facto de eles, intimamente, se sentirem seus inferiores – estou convencido disso.


Fiódor Dostoiévski, Por Motivo da Neve Húmida,
in Cadernos do Subterrâneo


[1] Uma “alma” é um servo da gleba, do sexo masculino, adstrito a uma aldeia ou a uma propriedade, juntamente com a sua família, e pertença de determinado senhor.

sábado, 25 de abril de 2009