quarta-feira, 16 de julho de 2008

Conhecer TOMAZ DE FIGUEIREDO

Nunca fui nem hei-de ir num barco à vela, entre o azul do céu e o azul do mar, deixar que o meu sonhar fosse palpável, seja real sem que deixe de ser sonho. Nunca o vento do largo há-de tostar-me a pele, nem uns olhos também azuis me olharão com amor. Nunca hei-de ter licença para ser o que sou, só hei-de ter a licença camarária para ir dentro de um caixão, com todos os meus sonhos prisioneiros lá dentro, misturados com o fedor de um cadáver.

Tomaz de Figueiredo, Outubro de 1942


Tomaz de Figueiredo (Braga, 6 de Julho 1902 / Lisboa, 29 de Abril de 1970)


Aquela noite na Toca do Lobo…

A “vista” dos fios do telégrafo vestidos de andorinhas, que a prima D. Maria do Socorro também quisera mostrar, [1] e que ele, Diogo, por demais já conhecia, a qual, por associação de ideias, sempre lhe trazia à lembrança um corte de fios, no tempo dos Couceiristas, crime por que pagara, inocente ou culpado, o senhor padre Magalhães de Araújo, Reitor de Santa Maria do Paço…

Inocente ou culpado, tardio de averiguar, procurando-lho, pois que há muito era morto o Reitor de Santa Maria do Paço…

Ele, decerto que não – clérigo minhoto e sanguíneo de luzida papada (seus para aí noventa quilos e pico de peso) -, mas o criado, o Espreita, por incumbência do amo, esse é que provavelmente apolaria ao poste e, com o alicate, trique! trique!, deixara as autoridades republicanas às escuras, enquanto o novo Arcanjo São Miguel investia a espedaçar a lança no coirato do dragão.

Só crível, quando muito, que o Reitor de Santa Maria do Paço, na valeta e de caçadeira no sovaco, apenas guardasse as costas e a retirada ao Espreita, mas aos ferros do Castelo, em Braga, o vira pagar pelo delito: e que assim as lágrimas lhe haviam queimado as meninas dos olhos de quase menino, alcançando-o a acenar-lhe lá de cima!

O senhor Reitor de Santa Maria do Paço – que já o convidava para os jantarões que oferecia pela Senhora das Candeias, pelo 25 de Março e pela Assunção de Nossa Senhora – ali penava de grades adentro!

Parecia-lhe que para sempre, que ali apodreceria vivo, martirizado pela Carbonária, que jamais voltaria lá a casa, a levar notícias frescas e jogar a sueca…

Ah! cabelos que tanto iam agora a embranquecer, porventura que a paixão nesse dia sentida principiara já a trabalhar para tal.

Noitadas de sueca e de conspiração, lá em casa!... Sinetadas em código, ao portão, de algum emissário que passara a raia!... Desalentos e esperanças renascidas!... A morte do tio Leonel, em Chaves, meses a seguir, depois que se haviam também juntado a Paiva Couceiro!...

Ah! se viesse a casar, jamais os filhos haviam de viver um tempo assim de Fé, de Lealdade e Maravilhoso: apenas pelo sangue o poderiam entender…

Duas e três mesas de sueca chegavam a armar-se, pois, além de vários esturrados da fidalgaria e do povo, apareciam mais padres: o padre Telmo Gonçalves, sempre de revólver e pessimista, o Abade de São Tiago, puxador de pau, o padre Amândio Gomes, pícaro brincazão, contador de anedotas sujas, o padre…

E todos se fiavam já do menino, que nem à mão de Deus Padre daria à língua! Assim ele ia ouvindo falar de armamentos, nomear um navio de guerra: em cifra, O Bicho, que tal e qual lhe chamara o Reitor de Lavouras, homiziado, participando que breve regressaria. (Eu cá, sigo no Bicho!)

Claro que tudo ia ser desnecessário, carabinas e cruzador, visto que, em peso, a tropa toda se levantaria, mal que Paiva Couceiro entrasse. Paiva Couceiro, até, muito raro era o dia em que não recebesse instâncias de mais este e de mais aquele regimento – que se apressasse, que resolvesse ligeiro, de contrário revoltavam-se eles antes… Da melhor fonte se sabia que, apenas fiado em tais prometimentos, solenes e jurados, o Comandante preparava a incursão, porquanto, militar, nunca se lhe meteria em cabeça a conquista dum país com duas ou três centenas de escopeteiros.

Ah! enrodilhado arquivo da memória, donde factos e factos saíam como em rede de arrasto! E, tudo, só pela “vista” duns fios de telégrafo, com andorinhas migradoras, que nem sequer a prima D. Maria do Socorro chegara a apresentar.

[…]

Escândalo, e taludo, fora o mestre-escola ter-se gabado aos rapazes: - “Eu cá, a mais o senhor professor de Portelo, o senhor Gonçalves, pertencemos à Carbonária!”

Protestavam, pais e mães de família: - “Então ele, esse Nunes, que se farta de ganhar dinheiro pelas festas da Igreja, a cantar e a tocar órgão, tem o descaramento de ser carbonário? Pois deixa que o meu filho é que não torna a pôr-lhe os pés na aula! Vai direitinho para a de São Brás, a do senhor José Baltasar, que esse é temente a Deus, embora fique um pouquinho mais longe! O rapaz que se erga mais cedo, e está o caso arrumado!”

Bem possível que de tais feitos nascesse a inimizade, a guerra que por anos e anos abrasara os alunos das duas escolas: combatimentos à pedra, cabeças alanhadas, encontros singulares, à murraça, e até à navalha: muitos pontos naturais e gastos de arnica, peleiras em casa: trepas de criar bicho.

[…]
Tomaz de Figueiredo, Uma Noite na Toca do Lobo
______________________________________
[1] No famoso cosmorama que o mano Francisquinho, Deus o tivesse em descanso, trouxera desses Parises de perdição. (Nota minha, com palavras do autor)

Sem comentários: