domingo, 5 de outubro de 2008

Conhecer JOÃO AGUIAR

Ainda não logrei definir com exactidão o que torna este lugar tão especial. Talvez a disposição das árvores, o modo como as suas cores se misturam sob a luz do Sol, talvez o jogo de sombras, talvez a folhagem – ou, neste momento, os ramos desnudados -, talvez o silêncio, porque é raro ouvir aqui outro som que não seja o das próprias árvores tocadas pelo vento.
Não sei. Se acreditar nos efeitos do geomagnetismo... não, nada de explicações científicas.
Lembro-me da primeira vez que aqui vim. Seguia de carro pela estrada, avistei o cruzeiro, que despertou a minha atenção – nesse tempo eu era um recém-chegado a Vale de Monges. Reduzi a velocidade, acabei por parar, o carro ficou estacionado mais ou menos no sítio onde hoje está. Voltei a olhar para o cruzeiro, que se ergue bizarramente, não à beira da estrada, mas no meio de um terreno coberto de mato rasteiro. E avistei, à distância, em pano de fundo, a mancha verde. Saí do carro sempre a olhar para ela, atravessei a estrada sem deixar de a olhar e caminhei até ao ponto exacto onde me encontro agora. Vim puxado, ou empurrado, por uma força que não sabia se me era exterior ou se era um impulso da minha fantasia que eu inconscientemente vestia com as roupagens da atracção magnética.
Há aqui, pensei então, uma configuração especial que evoca a entrada de um templo: uma espécie de propileu. Mas esta configuração, pensei ainda, não é, ou não é exclusivamente, física. A evocação não está na forma como as árvores se encontram dispostas nem nos contornos e acidentes do terreno. Não é a imagem concreta das coisas, é a imagem que as coisas desenham dentro de mim.
Hoje, após tantas visitas solitárias a este lugar, hoje penso o mesmo. Talvez por vergonha, não mais voltei a fazer o que então fiz. Ajoelhei-me primeiro, depois prostrei-me de olhos fechados, as mãos coladas à terra, e rezei – digo rezei porque todo o discurso dirigido a Deus, ainda que o nome não seja pronunciado, deve ser considerado uma oração.
Não voltei a fazê-lo nem o poderia fazer neste momento sem, prosaicamente, ficar encharcado. Isso é pouco importante, porém… O lugar conserva o mesmo encanto, o silêncio feito de murmúrios é o mesmo, o mesmo é o verde luminoso e o movimento vagaroso, solene, da ramaria.

Respiro fundo, caminho devagar por entre as árvores enquanto sinto que aqueles músculos sempre tensos – nos ombros, nos braços, no ventre, em muitos outros pontos do meu corpo – se distendem gradualmente. A sensação de alívio é tão forte que provoca em mim um efeito semelhante ao da vertigem.
Um pouco mais adiante começa o pinhal – também ele não é um pinhal qualquer, antes é a nave do templo, o ponto central do espaço mágico. Julgo, ou melhor, estou certo de que é o centro da imutabilidade de Vale de Monges, um pequeno mundo de três quilómetros de largura que as águas do rio Mansil rasgaram milhões de anos antes de existirem a Aldeia do Retiro e a minha Casa da Tapada e os monges que lhe deram o nome; este vale misterioso, porque resiste às mutações do admirável mundo novo que nos bate à porta com grandes e obscenas punhadas. Estou certo, não me perguntem porquê, poderia jurar que essa estranha força de resistência emana daqui.
Os pinheiros – há-os mansos e bravos – são enormes, de troncos grossos. Mas a altura que atingiram torna-os esguios, bem proporcionados, e um jogo de luz e sombras dá-lhes a aparência de colunas. Os ramos mais altos tocam-se de árvore para árvore com um efeito visual semelhante à forma das ogivas góticas e as copas dos pinheiros mansos uniram-se para formar uma vasta abóbada.
Por isso eu chamo a este lugar a Catedral Verde. É um nome que nunca pronunciei em voz alta porque o meu sentido do ridículo mo impede. Em todo o planeta, não haverá mais que uma ou duas pessoas diante de quem eu falaria na catedral verde e, mesmo junto dessas, não o fiz até hoje. Contudo, em conversa íntima comigo mesmo, posso mandar o ridículo às urtigas. Esta é a minha catedral verde e o centro, o umbigo, a alma de Vale de Monges.
Estive muito tempo sem vir aqui, um ano, talvez, e o reencontro acorda vários sentimentos, dos quais o mais forte é o remorso, ou antes, a auto-recriminação. Por ter permitido que as tensões e o ruído exterior do mundo me fizessem adormecer, distraído e neurótico, e assim abandonei a demanda do meu Graal particular. Aquilo a que eu chamo (também nunca, ou raramente, em voz alta) a busca da santidade.
Era uma prioridade absoluta – e foi-se degradando até ao nível das pequenas dores recorrentes que nos incomodam de vez em quando a partir de uma certa idade e de um certo cansaço interior. Era o meu programa de vida e deixei-o decair até ao grau de ocupação de curtos tempos livres.
...Não. Estou a ceder ao vício da dramatização, da tragedização. A realidade não é assim tão sombria porque esta demanda continua a ser, e é-o desde há muito, uma obsessão constante, mesmo quando apenas latente. Porém, de que serve ela, se não for mais do que isso, se eu não der o primeiro passo?
Em que consiste exactamente esse primeiro passo, eis a grande questão. Talvez seja, sem mais, olhar à minha volta, sentir em vez de raciocinar, ouvir em vez de falar – ouvir a voz do silêncio de que falam místicos e iniciados.
(Caminho muito devagar por entre as colunas da catedral. Se quiser manter esta imagem terei de admitir que a brisa, ao tocar as agulhas dos pinheiros, será um órgão e que os salmos são cantados por um coro de pássaros, mas não será isto excessivo, barroco, mesmo – ridículo? Por outro lado, como estou só, o ridículo não existe. O ridículo só existe quando alguém nos vê)
...Ou talvez seja o contrário da simplicidade, talvez seja um multiplicar de gestos e de iniciativas. Se tomar o ioga como referência, talvez seja associar o hatha ioga à meditação.
...Ou praticar o jnana ioga, o ioga do conhecimento e da intuição, ou o karma ioga, o da acção – das boas acções, por muito que esta expressão soe a falso no tempo corrente.
...Ou, muito mais primitivamente: meditar, estudar as incursões científicas do domínio do paranormal no nosso domínio, ler todos os filósofos, todos os pensadores, todos os doutrinadores, conhecer todas as religiões.
(Será mesmo verdade que o ridículo só existe quando alguém nos vê?)
O que é surpreendente é que esta enxurrada de ideias não me desorienta nem me irrita. Aqui, neste momento, sinto apenas que tudo isto há-de resolver-se de algum modo, que aquilo a que eu chamo a busca da santidade, o meu Graal particular, está ao meu alcance, não sei como nem quando. E que hei-de ser capaz de construir dentro de mim aquele mundo-sonho do adolescente ressuscitado, onde os heróis podem cavalgar sobre pradarias limpas e em florestas densas regadas por chuvas tépidas.
É este o efeito que sobre mim exerce a catedral verde de Vale de Monges.
Fecho os olhos para sentir melhor a vibração deliciosa que me sacode. Respiro fundo, bem fundo, para me encher com o ar perfumado de pinheiros, aquecido pelo Sol.


João Aguiar, A Catedral Verde

Sem comentários: