segunda-feira, 26 de março de 2012

Conhecer ANTONIO TABUCCHI

Antero de Quental. Uma vida


Antero chegou como o último de nove filhos a uma grande família dos Açores que possuía pastagens e laranjais, e a sua infância conheceu o austero e frugal bem-estar dos proprietários ilhéus. Teve entre os seus antepassados um astrónomo e um místico cujos retratos, juntamente com os do avô, estavam pendurados nas paredes de uma sala de estar escura que cheirava a cânfora. O seu avô chamava-se André da Ponte Quental e tinha conhecido o exílio e o cárcere por ter participado na primeira revolução liberal de 1820. Isto contava-lhe o pai, um homem simpático que gostava de cavalos e que tinha combatido na batalha batido na batalha do Mindelo do Mindelo contra os absolutistas.
Os seus primeiros anos tiveram como companhia os potrozinhos malhados e as cantilenas arcaicas de criadas que vinham dos montes de S. Miguel, onde as aldeias são de lava e têm nomes como Caldeiras e Pico de Ferro. Era uma criança calma e pálida, de cabelos arruivados e de olhos tão claros que por vezes pareciam transparentes. Passava as manhãs no pátio de uma grande casa de uma grande casa onde as mulheres guardavam as chaves dos armários e as janelas tinham cortinas de renda grossa. Ele corria e dava pequenos gritos alegres, e era feliz. Gostava muito do seu irmão mais velho, a quem uma silenciosa loucura ofuscava durante longos períodos uma inteligência rara e bizarra; com ele inventou um jogo a que chamavam O Céu e a Terra em que as peças eram seixos e conchas, e que jogavam numa espécie de tabuleiro de xadrez circular desenhado na poeira.
Quando o menino chegou à idade de estudar, o pai chamou o poeta António Feliciano de Castilho e confiou-lhe a sua instrução. Castilho era considerado então um grande poeta, talvez por causa das suas traduções de Ovídio e de Goethe, e talvez também pela sua cegueira desventurada que, por vezes, dava aos seus versos um tom de vate muito amado pelos românticos. Na realidade era um erudito irascível e austero que privilegiava a retórica e a gramática. Com ele o pequeno Antero aprendeu latim, alemão e métrica. E com estes estudos chegou à adolescência.

Ponta Delgada.Rua do Castilho.Casa onde nasceu Antero de Quental

Uma noite de Verão em que completara o seu décimo quinto aniversário, Antero acordou de sobressalto e sentiu que uma força o impelia a ir até ao mar. Era uma noite calma e a lua estava em quarto crescente. Toda a casa dormia e o vento enfunava as cortinas de renda. Vestiu-se em silêncio e desceu até aos rochedos. Sentou-se num penedo e olhou para o céu tentando adivinhar o que o poderia ter levado até àquele lugar. O mar estava calmo e respirava como se dormisse, e a noite era igual a todas as outras noites. Só que ele sentia uma grande inquietação, como que uma ansiedade que lhe apertava o coração. Naquele momento ouviu um bramido surdo que vinha da terra, a lua fez-se de sangue e o mar inchou como um ventre enorme e bateu contra as rochas. A terra tremeu e as árvores vergaram-se com a força de um vento impetuoso. Atónito, Antero correu para casa e encontrou a família reunida no pátio; mas o perigo tinha passado e nas mulheres o pudor das vestes nocturnas já era superior ao susto que tinham apanhado. Antes de voltar para a cama, Antero pegou num bocado de papel e escreveu à pressa, sem conseguir controlar-se, algumas palavras. E enquanto escrevia deu-se conta de que as palavras se iam ordenando na folha quase sozinhas, segundo a combinação métrica do soneto: e ele dedicou-o, em latim, ao deus ignoto que lho estava a inspirar. Nessa noite dormiu serenamente e de madrugada sonhou com um pequeno macaco de focinho irónico e triste que lhe estendia um bilhete. Ele lia-o e percebia um segredo que não era permitido a ninguém saber e que só o animal conhecia.
Estava a ficar um homem. Estudava astronomia e geometria, deixou-se seduzir pela hipótese cosmogónica de Laplace, pela ideia da unidade das forças físicas e pela concepção matemática do Espaço. À noite escrevia os seus pequenos mecanismos misteriosos e abstractos, nos quais traduzia em palavras a sua ideia da máquina cósmica. Já se resignara ao sonho do pequeno macaco de focinho irónico e triste e quase ficava admirado nas noites em que ele o não visitava.
Quando chegou à idade dos estudos universitários partiu para Coimbra, como exigia a tradição familiar, e anunciou que tinha chegado o momento de abandonar o estudo das leis cósmicas e de se dedicar às dos homens. Tornara-se um jovem alto e robusto, com uma barba loura que lhe dava um aspecto majestoso, quase altivo. Em Coimbra conheceu o amor, leu Michelet e Proudhon e, em vez das leis que aplicavam a justiça de então, entusiasmou-se com a ideia de uma justiça nova que falava da igualdade e da dignidade dos homens. Seguiu esta ideia com a paixão que lhe vinha dos seus antepassados ilhéus, e também com a razão do homem que era, porque estava convencido de que a justiça e a igualdade participavam da geometria do mundo. Na forma fechada e perfeita do soneto escreveu o ardor que o dominava e a sua ânsia de verdade, partiu para Paris e fez-se tipógrafo, como outro qualquer poderia ir para monge, porque queria conhecer a fadiga do corpo e a realidade concreta das ferramentas. Depois da França, partiu para Inglaterra e para os Estados Unidos, viveu em Nova Iorque e Halifax, para conhecer as novas metrópoles que o homem estava a construir e os vários modos de viver nelas. Quando regressou a Portugal tinha-se tornado socialista. Fundou a associação nacional dos trabalhadores, viajou e fez prosélitos, viveu com os camponeses, passou pelas suas ilhas como um tribuno de discurso ardente, conheceu a arrogância dos poderosos, as adulações dos astuciosos, a cobardia dos servos. Animava-o o desdém, e escreveu sonetos de sarcasmo e de furor. Conheceu também a traição de alguns camaradas e a ambígua alquimia de quem consegue conjugar o interesse comum com o seu próprio interesse.


Loja de Benjamin Ferin, onde comprou a arma

Compreendeu que tinha de deixar a outros, mais hábeis do que ele, a tarefa de prosseguir a obra que ele iniciara, quase como se ela já não lhe pertencesse. O momento era de homens práticos, e ele não o era: e isso deu-lhe um sentimento de desolação, como uma criança que perde a inocência e descobre improvisamente a vulgaridade do mundo. Não tinha ainda cinquenta anos e o seu rosto estava muito marcado. Os olhos tinham-se-lhe encovado e a barba estava a embranquecer. Começou a sofrer de insónias e a dar gritos sufocados nos raros momentos de repouso. Às vezes sentia que as suas palavras não lhe pertenciam e frequentemente surpreendia-se a falar sozinho como se fosse um outro que falasse com ele. Um médico de Paris diagnosticou-lhe histeria e prescreveu-lhe um tratamento eléctrico. Antero anotou que sofria de infinito e talvez fosse uma doença mais plausível para ele. Talvez estivesse apenas cansado da forma transitória e imperfeita do ideal e da paixão, e a sua ansiedade encaminhava-se já para uma outra forma geométrica. Nos seus escritos começou a aparecer a palavra Nada, que lhe parecia a forma mais perfeita de perfeição. Ia já a entrar no seu quadragésimo nono e regressou à sua ilha.


Na manhã do dia 11 de Setembro de 1891, saiu da sua casa de Ponta Delgada, desceu a pé a íngreme rua cheia de sombra até à Igreja Matriz e entrou numa pequena espingardaria da esquina. Vestia um fato preto e sobre a camisa branca levava uma gravata segurada com um alfinete com uma concha. O proprietário era um homem amável e gordo que gostava de cães e de gravuras antigas. Havia um ventilador de latão que girava lentamente no tecto. O proprietário mostrou ao cliente uma bela gravura seiscentista, comprada recentemente, que representava uma matilha de cães perseguindo um veado. O velho lojista tinha sido amigo de seu pai, e Antero lembrou-lhe que, em menino, os dois homens o levavam com eles à feira de Caloura, onde havia os cavalos mais belos de S. Miguel. Ficaram longamente a falar de cães e de cavalos, depois Antero comprou um pequeno revólver. Quando saiu da loja o campanário da Matriz estava a bater as onze. Ele percorreu lentamente toda a beira-mar até à capitania do porto e deteve-se longamente no cais a olhar para os veleiros. Depois atravessou a zona ribeirinha e entrou na praça da Esperança, rodeada de magros plátanos. O sol era feroz e tudo estava branco. A praça estava deserta àquela hora por causa do enorme calor. Um burro triste, preso à argola de uma parede, deixava pender a cabeça. Enquanto atravessava a praça, Antero ouviu uma música. Parou e voltou-se. Na esquina oposta, à sombra de um plátano, estava um vagabundo a tocar um realejo. O vagabundo fez-lhe sinal e Antero dirigiu-se para ele. Era um cigano magro e tinha um macaco ao ombro. Era um pequeno ser de focinho irónico e triste e vestia uma farda vermelha com botões dourados. Antero reconheceu o macaco do seu sonho e compreendeu quem era. O animal estendeu-lhe a minúscula mão negra e Antero deixou cair nela uma moeda. Em troca o animal tirou à sorte um papelinho colorido entre os muitos que o cigano tinha enfiados no chapéu e deu-lho. Antero pegou nele e leu-o. Atravessou a praça e sentou-se num banco junto do fresco muro do convento da Esperança, onde havia uma âncora azul pintada na parede. Tirou o revólver do bolso, levou-o à boca e puxou o gatilho. Teve um momento de espanto ao continuar a ver a praça, as árvores, o cintilar do mar e o cigano que tocava o realejo. Sentiu um frio morno que lhe escorria pelo pescoço. Accionou o mecanismo do revólver e fez fogo pela segunda vez. Então o cigano desapareceu e os sinos da Matriz começaram a bater o meio-dia.

António Tabucchi [Pisa, 23.Setembro.1943-Lisboa, 25.Março.2012]