quinta-feira, 26 de junho de 2008

Conhecer PEARL S. BUCK


Pearl S. Buck

Escritora norte-americana, Pearl Sydenstricker Buck nasceu a 26 de Junho de 1892 (Faz hoje 116 anos), em Hillsboro, no estado da Virgínia Ocidental. Filha de um missionário protestante, passou a infância na China, onde se situa a acção de grande parte das suas obras.
Em 1931, publica The Good Earth (Terra Bendita) e ganha o Prémio Pulitzer. Em 1938, tornou-se a primeira mulher norte-americana a ser galardoada com o Prémio Nobel.
Desiludida quanto à possibilidade de cooperação entre os povos, empenhou-se na luta pelos direitos das crianças asiáticas, muitas delas abandonadas e estigmatizadas por serem fruto de relações entre ocidentais e asiáticas.
Faleceu a 6 de Março de 1973, em Danby, no estado do Vermont.



[…]
E dirigindo-se ao palanquim que os homens haviam deposto no chão, levantou a cortina e, fazendo estalar a língua, disse:
- Sai, minha Flor de Lotus, aqui está a tua casa e o teu senhor.
Wang Lung estava num suplício, porque via no rosto dos carregadores sorrisos irónicos, e pensou:
- Ora! Estes sujeitos são uns vadios da cidade, gente desprezível e sem cotação.
Indignou-se consigo mesmo por sentir a cara vermelha e escaldante e por isso resolveu calar-se.
Então a cortina levantou-se e Wang Lung viu, sentada no interior da cadeirinha, pintada e fresca como um lírio, a jovem Lotus. Esqueceu tudo, até mesmo a sua cólera contra os maliciosos vadios da cidade, tudo menos que a tinha comprado para si e que ela vinha viver com ele para sempre. Ficou entorpecido, mas trémulo, vendo-a erguer-se, grácil como uma flor que ondula ao sopro do zéfiro. Depois, como ele a fitava absorto, Lotus tomou a mão de Cuckoo e desceu do palanquim, de cabeça inclinada e olhos baixos, caminhando a passos incertos e vacilantes, apoiada ao braço de Cuckoo. Passou diante dele sem lhe dizer palavra e perguntou a Cuckoo, com uma voz langorosa:
- Onde é o meu quarto?
Então a mulher do seu tio veio ampará-la do outro lado, e ambas a conduziram pelo pátio para os novos quartos que Wang Lung mandara construir.
Mas ninguém da casa de Wang Lung a viu passar, porque ele mandara os criados e Ching trabalhar naquele dia para um campo afastado. O-lan tinha saído com os dois gémeos sem dizer para onde ia, os dois rapazes estavam na escola, o velho dormia encostado à parede sem ver e sem ouvir nada, e a tolinha não percebia quem entrava ou saía e só conhecia os rostos do pai e da mãe. Logo que Lotus entrou no quarto, Cuckoo cerrou as cortinas sobre ela.
Após alguns momentos, a mulher do tio de Wang Lung voltou, com um malicioso, esfregando as mãos, como se quisesse sacudir alguma coisa.
- Esta mulher pintada e perfumada – disse ela rindo – tresanda como se fosse uma coisa ruim. – Depois acrescentou com maior malícia: - Não é tão nova como aparenta, meu sobrinho! Estou mesmo em dizer que, se não estivesse à beira da idade em que os homens deixarão de olhar para ela, nem brincos de jade, nem anéis de ouro, nem vestidos de cetim e seda a teriam decidido a vir para casa de um lavrador, mesmo que fosse um lavrador rico.
Mas vendo que Wang Lung se indignara ao ouvir linguagem tão franca, apressou-se a acrescentar:
- Lá bonita é ela. Nunca vi outra mais bela e será deliciosa para ti como o arroz das oito pedras preciosas que servem nos banquetes, depois dos anos que passaste com a ossuda escrava da Casa de Hwang.
Wang Lung não respondeu. Passeava, de um lado para o outro, pela casa, apurando o ouvido sem poder estar tranquilo. Por fim, não se conteve: levantou a cortina vermelha, atravessou o pátio que mandara construir para Lotus, e entrou na penumbra do quarto onde ela estava. Ficou junto dela todo o dia, até à noite.
Durante todo esse tempo, O-lan conservou-se fora de casa. De madrugada, pegou numa enxada, chamou os filhos e saiu levando um pouco de comida fria, enrolada numa folha de couve; mas ainda não tinha regressado. Ao cair da noite, entrou em casa silenciosa, suja de terra e cansada, seguida pelos filhos, calados. Sem dizer palavra, foi para a cozinha, preparou a ceia e pô-la sobre a mesa como de costume, chamou o velho, meteu-lhe na mão os pauzinhos, deu de comer à tolinha e comeu alguma coisa com os filhos. Depois de deitar as crianças, como Wang Lung continuava sentado à mesa, a sonhar, levantou-se para se deitar e foi para o quarto, onde dormiu sozinha na sua cama.
Então, Wang Lung pôde saciar, noite e dia, o seu amor.
[…]
Pearl S. Buck, Terra Bendita

sábado, 14 de junho de 2008

Conhecer CRISTÓVÃO DE AGUIAR


[…] Sabes, Fernando, o mal do mundo é a gente não se contentar com a nossa sorte. Feliz daquele que se conforma. Hás-de compreender que o mundo é todo igual, digo isto por experiência própria. Tantas vezes ouvi teu avô desonrando a nossa Ilha, que só a América era um mar de rosas. Então, dizia ele, na Primavera a América é linda. Teu pai na mesma, que excomungada Ilha esta, e levou a vida nesse fado batido. Agora que já conhece a terra da América digo-lhe: não sei como teu pai dizia que a Primavera aqui era um paraíso. E ele responde-me: “Este mundo é uma treta, é todo igual”. Agora o que ele mais deseja é regressar à Ilha, aos seus bocadinhos de distracção, à noite, no Canto da Fonte, na conversa com os amigos, às suas galinhas, pombas e coelhos. O que lhe repugna é a oficina, do mais sente tantas saudades, que qualquer dia, quando amealharmos um dinheirinho, a gente desapega-se daqui para fora. E eu também me sinto aqui um pouco aborrecida. Não quero com isto dizer que os ganhos não sejam bons, mas, se fôssemos fazer vida de lóias, podes ficar sabendo que não se amanhava nada. Há aqui famílias que vieram das Ilhas que só têm dívidas e pouco mais. Querem automóveis de luxo, trocam-nos todos os anos, e ornamentos nas suas casas, mudam de mobília vezes sem conta e depois ficam admirados com as prestações que têm de pagar. Sabes muito bem que somos económicos, dispensamos certas tolices, por isso teu pai tem já o seu dinheiro fresco, no Banco, a render. Digo-te mais uma vez que o mundo é todo igual e bem tolo serás tu se daí saíres como andas a pensar. Quem nunca saísse do seu caminho, porque, na fim, o emigrante arranja uma doença séria: custa-se a sair de cá, tem saudades da sua Ilha, e vive neste balancé, sem saber muito bem o que quer e assim se acaba nesta inquietação. […]


Cristóvão de Aguiar, Trasfega


terça-feira, 10 de junho de 2008

Conhecer CARLOS TOMÉ


A SESSÃO SECRETA

*********************
O casal abranda o passo. Ela mantém-se meio encolhida, cosida ao corpo dele, como se procurasse protecção. Ele observa, sob o ombro, esquadrinhando os recantos mais escuros da rua, já de si mal iluminada.
Os dois param à porta de uma casa sem mais sinais de vida interior do que uma ténue luz numa janela do piso superior. São dez da noite, em ponto.
Com o punho fechado, ele bate duas vezes, faz uma pausa, dá mais duas batidas, faz nova pausa e bate mais uma vez. É, obviamente, um código.
A porta abre-se, de imediato, e os dois entram rapidamente. Dentro está um outro casal, que sem uma palavra os precede pelo interior da casa. Deduz-se, pelo caminhar decidido dos quatro, que aquele trajecto já foi feito muitas vezes. Dirigem-se ao que aparenta ser um quarto de arrumações. Pouco mais tem do que uma mesa, algumas cadeiras e uma pequena cama de estilo militar. A falta de janelas e a fraca iluminação conferem-lhe um ar claustrofóbico.
Uma vez chegados, a porta é fechada à chave. O anfitrião dirige-se a um monitor de televisão, liga-o e certifica-se de que a imagem está a chegar em boas condições. Dá-se por satisfeito ao ver, no ecrã, a entrada da própria casa e um pedaço de rua, onde agora se vê passar um cão vadio.
- Tudo em ordem – diz ele, baixinho.
Os quatro cumprimentam-se, então, trocando abraços, beijos e saudações no mesmo tom de voz baixo.
- Como estão vocês? A tua tosse já passou? E as crianças, estão de saúde?
Os quatro conversam agora, animados, mas discretamente, sem nunca elevarem as vozes mais do que em tempos distantes se utilizava nos confessionários. Estão calmos e descontraídos, apesar dos olhares que vão deitando ao monitor da câmara instalada sobre a porta da rua.
O anfitrião serve bebidas. Os quatro vão beberricando nos intervalos da conversa, que flui quase só acerca de banalidades do quotidiano de cada um. Um observador, por mais desatento, depressa notaria que são muito amigos.
Quando as bebidas terminam, o anfitrião dirige-se à cama e anuncia:
- Vamos lá, então!
De baixo do colchão, tira uma pequena caixa, que trata com tal cuidado que dir-se-ia recear quebrá-la. Os quatro sentam-se à mesa, com indisfarçado entusiasmo. Uma das mulheres adianta-se, abre a caixa e exibe, com um sorriso, um velho baralho de cartas. Tão velho que falta um canto ao sete de paus e há uma nódoa negra no valete de ouros, pelo que são facilmente identificáveis.
Mas é o que resta aos quatro. Uma relíquia do princípio deste século, guardada no dia em que as autoridades decidiram proibir e mandar destruir todos os baralhos de cartas, considerados antipedagógicos, transmissores de doenças e, por isso, socialmente inaceitáveis.
Desde esse triste dia 1 de Janeiro de 2005, já lá vão onze anos, a caça feroz aos baralhos de cartas tem levado muita gente à barra dos tribunais e à vergonha de ser apontada como disseminadora de doenças e socialmente desprezível.
Em substituição dos baralhos, foi fomentada e, até, subsidiada a aquisição de consolas electrónicas com os mais populares jogos, desde a plebeia “sueca” até à sofisticada “canasta”, sem esquecer, claro, o “vinte-e-um”, o “king”, o “solitário” e muitos outros.
Mas quem consegue jogar “bridge” numa consola? Onde está o gozo táctil do cartear? Como fazer aquele estalido sacaninha com a carta, só para vincar superioridade e irritar ainda mais os adversários?
No quarto, Norte abre:
- Um pau!
Os dois casais são resistentes. Inveterados jogadores de “bridge”, há quase sete anos vêm fazendo estas sessões secretas, mesmo sabendo que podem ser descobertos pela temível BPC, a Brigada do Politicamente Correcto.
O risco é grande, mas o apego ao “bridge” ainda é maior. Tão superior que, aos quatro, o que mais preocupa é o facto do baralho estar a ficar cada dia mais estragado. Ao ponto de também já se começar a notar falhas no rei de copas. O que é grave.
Carlos Tomé, A Noite dos Prodígios e outras histórias,
Salamandra (2002)


quarta-feira, 4 de junho de 2008

Conhecer MANUEL POPPE 2


COM AS MÃOS ATADAS

**************************

- Marta!

Alguém chamava, lá dentro. Não respondeu, mergulhada na vista da janela que abria para o vale. Compôs o cabelo, que se lhe enredou nos dedos. Pousou as mãos no regaço e deixou-se ficar, recostada na cadeira de baloiço, inerte, esquecida, indiferente. Não queria pensar. A neblina, a soltar-se da terra, dos casais, das hortas, cobria quase tudo. Pouco distinguia, a não ser as luzes que se acendiam, aqui e ali. O ruído era o das crianças, que corriam no jardim, das amigas que as vigiavam, das criadas, na cozinha, muito longe. Nem ela sabia, nem ouvia. Só queria aquele momento roubado e o campo sem fim. A luz crepuscular, doce, rosa dentro da bruma, leve, imponderável, livre, enquanto casas, árvores, volumes escureciam, recuperavam a forma e, depois, se iam perdendo, com o chegar da noite.

- “O vestido…”

Qual vestido? E sorriu: o vestido de popelina da mesma cor, que o pai lhe oferecera, em criança? Há tantos anos! Em plena adolescência, quando corria por aqueles atalhos, subia às árvores e arranhava as pernas, nas roseiras bravas, se deitava no chão, a admirar as estrelas cadentes de Agosto, e ninguém a encontrava, à procura dela e ela a esconder-se? Sozinha, a cantar baixinho, “meu amor é marinheiro”, “da minha janela à tua…” E de repente tinha medo e punha-se a tremer. Dominava-se e começava a andar devagarinho, entre as sombras e as pedras, de volta à casa. “Uh!”, gritava, a assustar os que a buscavam, ao esbarrar com eles. E ria, aliviada. Voltava a casa murcha, impaciente consigo por ceder. Ela é que fora ter com eles.

- “Sempre…”

Então, as suas pernas eram duras e o corpo não lhe pesava.

- Olá…

A miúda surgira de repente e espreitava-a, a medo.

- Olá… - repetiu, mas logo desatou a fugir, com a outra que se encostara à ombreira da porta.

Doeram-lhe as gargalhadas, que não sabia se eram de troça ou brincadeira. Inclinou-se e tentou ver-se nos vidros da janela.

- “Cara de pau…”

Passou as mãos pelo rosto, a seguir as linhas das rugas, a palpar a pele seca.

- “O creme… Apanho muito sol…”

O sorriso amargo vincou-lhe os traços. E ironizou:

- “Nem as crianças me querem! Estou velha!... Velha aos sessenta anos?”

Filhos? Netos? Estavam lá dentro, falavam, gritavam, divertiam-se. Longe. O marido? Cansara-se dela e ela cansara-se dele. Podia vir, que não diria nada, mesmo que falasse. Respeitava-o? Respeitava as pessoas. Por aí não vinha mal ao mundo. Nenhum mal. Talvez fosse pior: não havia nada. Cansara-se de o seguir, talvez se tivesse cansado de os seguir a todos, fartara-se. E não se assustou com o pensamento: porquê? Que acontecera ao entusiasmo, a quanto dera? Aceitara-os de olhos fechados, entregara-se-lhes. Sacrificara-se. Ao princípio não se queixara. Parecia-lhe natural e era natural, porque as coisas aconteciam intensamente. Ardentemente. O seu corpo vibrara. Mas, pouco a pouco, por isto, por aquilo, esmorecera. E, agora, desistira? Ou não soubera querer, sempre o medo, a angústia, que disfarçava mas nunca vencera. Não se queixava, amara-os. Continuava a amá-los. Hoje, porém, as coisas tinham mudado: o medo transformara-se em angústia, que a oprimia. Tinha de a enxotar. A angústia dava cabo dela. Pouco a pouco, todos os dias, e sentia-o, fugiam-lhe as forças, sufocava. Reagia aos arranques, numa espécie de estertor. Não queria desprezar-se; não podia. E, no entanto, sabia, claramente, que nunca fora dona de si própria e queria sê-lo, ao menos uma vez. Um dia! Mas teimava em viver ali.

- “O tempo…”

Sim, o tempo, que roía, que degradava, que tudo atirava por terra. E não se mexeu. Escurecia. Não valia a pena acender a luz. Entretinha-se com as que brilhavam, intermitentes, lá fora. Levantara-se uma brisa muito leve, que refrescava. Envolveu-se no xaile de lã, que trazia aos ombros.

- “É o fim do verão…”

Caiu na modorra, acordava e adormecia, nunca adormecia. E, de repente, a paisagem andou vinte anos para trás. Já não era o vale, nem casais, nem hortas, que via. Reconheceu a montanha onde se perdera. Os cimos ainda cobertos de neve, as abas, cortadas a pique, o silêncio. Era outro Setembro e visitara, em grupo, o Norte de Espanha. Naquela manhã, durante o passeio, insensivelmente, fora deixando os companheiros para trás e viera ali parar, não sabia onde. Que importava? E repetiu-se o que a imobilizara: o susto, o vazio, a vertigem.

O coração, aos saltos, parecia que ia rebentar. E os olhos fixaram a águia, que girava devagarinho, muito longe. Esquecera tudo. As únicas referências eram as escarpas e a águia, presa do azul gelado do céu. Não fazia nenhum esforço para se lembrar, para compreender. O que fazia ali não lhe interessava. Tinha medo de saber. Ninguém devia saber. Era livre. Os outros não existiam. Não podiam travá-la ou ensinar-lhe o caminho. Ficou quieta, à espera. Sorriu à neve imaculada. Não queria pisá-la. Lembrava-se de haver visitado umas grutas, atravessadas por um riacho e com o tecto repleto de estalactites.

- “Se lhes tocar, morrem. Não crescem mais…” – explicara o guia.

E pensou que, se continuasse a andar, aconteceria a mesma coisa: aquele momento morreria. Não queria voltar atrás. Era ela. E abandonou-se à vertigem, ao arrepio que a atravessou, lhe desceu dentro, a fez estremecer, gozar a própria solidão. As fontes latejavam-lhe, sentiu os seios crescerem, rijos, o corpo tenso, os lábios entumecidos. Ia morrer? Não aguentava mais? E se morresse? Que importância tinha? Nunca o que viesse depois seria aquilo. Respirou fundo, encheu o peito, desafiou a neve, as montanhas, a águia impassível, lá no alto. Não tinha medo: nada poderia dobrá-la. Ah! Guardar a plenitude! Para sempre!

- “Marta!”

Chamavam por ela? Voltavam a casa? Acordou, sobressaltada, e ficou a escutar. Sim, outra vez, as vozes… Cerrou os punhos. Hirta, apertou os dentes. Não os queria! Mas eles falavam, riam, aproximavam-se, ouvia-lhes os passos no corredor. Rezou baixinho, a pedir que não entrassem.

Manuel Poppe, in “Um Inverno em Marraquexe”

terça-feira, 3 de junho de 2008

Conhecer JOHN STEINBECK

Um homem tem de ter qualquer coisa a que se ligue, qualquer coisa que ele possa estar certo de encontrar lá de manhã.


Costumo reler os livros de que gosto várias vezes. De cada vez que o faço, descubro coisas que, antes, me tinham escapado. A evolução contínua a que estamos sujeitos alarga os nossos horizontes e, de cada vez que lemos, somos sempre um novo leitor com uma nova interpretação da obra. Por isso, um bom livro é uma fonte inesgotável de sabedoria.

Acabei de ler, pela enésima vez, o “A Um Deus Desconhecido”, do John Steinbeck. Nunca, como agora, compreendi a força de Joseph Wayne e o seu amor desmedido pela terra. Uma terra dependente da chuva, como ele da própria terra. E de como essa telúrica e trágica dependência o transformou num ser solitário e sofredor. A chuva e a terra, fontes de vida que, por vezes, negam essa vida, lançam, irremediavelmente, o homem impotente na prática de ritos propiciadores da abundância desejada. Simples superstição desesperada ou necessidade de comunicação com as forças ocultas que controlam o nosso destino? Talvez reminiscências de uma época remota, onde o maravilhoso fazia parte do quotidiano das pessoas, e que se perdeu.



[…]
Rama continuou: “Não se há homens nascidos fora da humanidade, ou se alguns homens são tão humanos que façam os outros parecer irreais. Quem sabe se um deus em miniatura vive na Terra de vez em quando? Joseph tem uma força inquebrantável; tem a calma das montanhas, e as suas emoções são tão primitivas, tão ferozes, tão súbitas, como o relâmpago – e, até onde posso ver ou saber, exactamente tão falhas de razão como ele. Quando estiver afastada de Joseph, tente pensar nele e verá o que eu quero dizer. A figura dele tornar-se-á gigantesca, até ultrapassar as montanhas; e a sua força será como o mergulho irresistível do vento. Benjy morreu. É impossível pensar que Joseph morra. Ele é eterno. O pai morreu, mas não foi uma morte.” A boca de Rama movia-se impotente em busca de palavras. Gritou, como ferida duma dor súbita: “Digo-lhe eu, esse homem não é um homem, a menos que seja todos os homens. A força, a resistência, o raciocinar lento e laborioso de todos os homens, e toda a alegria e sofrimento, aniquilando-se mutuamente, mas permanecendo no resíduo final. Ele é tudo isto: o repositório duma pequena parte da alma de cada homem e, ainda mais, um símbolo da alma da Terra. […]
Elizabeth […] não queria olhar para Rama. “Você ama o meu marido”, disse numa voz sumida, acusadora. “Você ama-o e sente receio.”Rama levantou os olhos lentamente; voltou a baixá-los. “Não o amo. Não há qualquer possibilidade de ser correspondida. Adoro-o; não há necessidade de ser correspondida nisso. E você adorá-lo-á, igualmente sem nenhuma recompensa. Agora já sabe, e não tem motivo para receios.”