[…]
- Acaba lá com isso! Todos têm direito à vida… O Paredes foi despedido porque estava velho e cheio de achaques. Já dera o que tinha a dar. O mesmo aconteceu com o Armando, com o Telhadais, com o Vicente, com todos. Não é preciso empenhos de outros. Já viste algum patrão querer operários velhos? Antigamente, eram postos na rua sem mais aquelas… Agora, o Sindicato dá-lhes vinte escudos por semana. Sempre podem comer quatro dias por mês…
Alguns riram. Horácio não desistira de esvaziar-se de suas razões, mas Pedro, apertando-lhe mais fortemente o braço, pedia-lhe:
- Cale-se! Cale-se!
Do outro lado, alguns operários afastavam-se, levando, com eles, a Tramagal. Então, o homem de cabelo branco, olhos profundos e dois únicos dentes na boca envelhecida, acercou-se de Horácio:
- Não lhe leve a mal. Ele tem aquele feitio refilão, mas não é má pessoa. O melhor é não lhe ligar importância. Mas diga-me uma coisa: como é que diabo você, com essa idade, veio parar aqui?
Os três voltaram a sentar-se. Horácio desabafou. Havia simpatizado com aquele homem desde a sua primeira intervenção – e contou-lhe tudo. O outro ouvia-o em silêncio, sem mesmo acabar de descascar a batata cozida que tinha entre as mãos. Quando Horácio terminou, ele sorriu:
- Está tudo muito bem. É pouco mais ou menos como eu tinha imaginado. Ninguém se sujeitava a isto se não tivesse necessidade. O que me admira é que você, um homem feito, ainda acredite que… - Hesitou e o seu olhar envolveu também a Pedro: - Enfim, vocês são ainda novos e o Mundo há-de dar muitas voltas. Eu logo explico tudo ao Tramagal. E não o tome de ponta, que não vale a pena. Ficamos amigos, não é verdade? Eu chamo-me José Nogueira, mas ninguém me trata assim. Chame-me Marreta.
[…]
- Acaba lá com isso! Todos têm direito à vida… O Paredes foi despedido porque estava velho e cheio de achaques. Já dera o que tinha a dar. O mesmo aconteceu com o Armando, com o Telhadais, com o Vicente, com todos. Não é preciso empenhos de outros. Já viste algum patrão querer operários velhos? Antigamente, eram postos na rua sem mais aquelas… Agora, o Sindicato dá-lhes vinte escudos por semana. Sempre podem comer quatro dias por mês…
Alguns riram. Horácio não desistira de esvaziar-se de suas razões, mas Pedro, apertando-lhe mais fortemente o braço, pedia-lhe:
- Cale-se! Cale-se!
Do outro lado, alguns operários afastavam-se, levando, com eles, a Tramagal. Então, o homem de cabelo branco, olhos profundos e dois únicos dentes na boca envelhecida, acercou-se de Horácio:
- Não lhe leve a mal. Ele tem aquele feitio refilão, mas não é má pessoa. O melhor é não lhe ligar importância. Mas diga-me uma coisa: como é que diabo você, com essa idade, veio parar aqui?
Os três voltaram a sentar-se. Horácio desabafou. Havia simpatizado com aquele homem desde a sua primeira intervenção – e contou-lhe tudo. O outro ouvia-o em silêncio, sem mesmo acabar de descascar a batata cozida que tinha entre as mãos. Quando Horácio terminou, ele sorriu:
- Está tudo muito bem. É pouco mais ou menos como eu tinha imaginado. Ninguém se sujeitava a isto se não tivesse necessidade. O que me admira é que você, um homem feito, ainda acredite que… - Hesitou e o seu olhar envolveu também a Pedro: - Enfim, vocês são ainda novos e o Mundo há-de dar muitas voltas. Eu logo explico tudo ao Tramagal. E não o tome de ponta, que não vale a pena. Ficamos amigos, não é verdade? Eu chamo-me José Nogueira, mas ninguém me trata assim. Chame-me Marreta.
[…]
Marreta habitava, sozinho, um casinhoto perto da ribeira que ladeava o povoado. Era viúvo e não possuía outra família além de um filho na América, do qual falava sempre com melancolia, queixando-se de que ele deixara de escrever e o esquecera.
Vegetariano e esperantista, na defesa daquela forma de sustento e a pregar as vantagens de uma só língua para a Humanidade inteira, Marreta punha tanto fervor como se de credos religiosos se tratasse. Ele próprio cozinhava os seus vegetais e, vida sóbria, despendia a maior parte da féria em brochuras e correspondência com esperantistas estrangeiros, nas semanas em que um ou outro operário não lhe demandava a casa, a tartamudear um pedido de empréstimo. Conhecedores do seu feitio, raros lhe pagavam; e, se algum o fazia, era, quase sempre, para estar apto a pedir, noutra ocasião de aperto, uma quantia maior. Marreta estimava o dinheiro em relação apenas com o preço dos selos do correio. A sua grande volúpia seria poder escrever muitas cartas e receber muitas também dos esperantistas das outras terras. Como houvesse começado a corresponder-se com uns húngaros, tanto se apaixonara pela Hungria que acabara estudando vários aspectos da vida daquele país, mesmo os que não tinham afinidade alguma com o esperanto. E, durante mais de um ano, ao falar, citava a Hungria por tudo e por nada.
Na Aldeia do Carvalho poucos adeptos arrebanhara para a língua internacional e para o vegetarianismo não conquistara um só. Debalde ele jurava que, assim, seria melhor a saúde, mais longa a vida e menor a escravidão do ser humana às necessidades de cada dia. As mulheres, sobretudo, contrariavam-lhe a propaganda. Mais realistas do que os homens, afirmavam, desdenhosas, que fartas de batatas estavam elas desde que haviam nascido e que pena tinham de não poder comer carne todos os dias. Um bife! Uma perna de carneiro assada! Quem lhos dera!
Apesar dessas divergências, a quadrazita que Marreta habitava enchia-se de operários quase todas as noites. Fugindo ao ambiente de suas casas, ao ruído e movimento da filharada, os homens vinham para ali, naquele período do Inverno, jogar a bisca e cavaquear. A ausência de mulheres, de crianças e dos problemas domésticos dava-lhes uma efémera sensação de evasão. Além disso, se as doutrinas vegetarianas não os seduziam e se lhes produzia antecipada preguiça a ideia de estudar esperanto, eram fascinados por outras aspirações que Marreta juntava àquelas, numa catequese que ele exercia há muito tempo já. Muitas vezes Horácio ouvia-o referir-se a um mundo que viria, um dia, um mundo onde não existiriam nem pobres, nem ricos, nem grandes, nem pequenos – e onde todos teriam tudo quanto carecessem para viver sem apoquentações. Sempre a conversa ia para aquele ponto. Se se falava de alguém que fora despedido, de falta de luz nas casas e de lugares no Albergue, de pai que não tinha pão para os filhos, de pessoa que andava esfarrapada ou pedia esmola, sempre se falava desse dia em que tudo isso acabaria e os homens seriam mais felizes. Seriam todos como irmãos, uns não explorariam os outros e não haveria mais guerras.
Horácio admirava-se de que, parecendo Marreta tão inteligente, acreditasse naquilo, quando ele, que sabia muito menos, não podia crer, pois ricos e pobres houvera-os sempre e se alguém fosse tirar aos ricos o que lhes pertencia, logo viriam a guarda republicana e a polícia e poriam tudo como dantes. E mais surpreendido ficava ao verificar que todos os outros, interrompendo o jogo, iam lançando as suas palavras na mesma direcção das de Marreta. Até o Ricardo, sempre tão calado, tão metido consigo, estava, via-se logo, de acordo com aquilo. Alguns dos operários traziam jornais e liam coisas passadas em terras estrangeiras, notícias da guerra, que os outros escutavam em silêncio, enquanto o fulgor do lume lhes enrubescia as caras atentas. Depois, um e outro afirmavam que o dia podia chegar mais depressa do que muitos esperavam.
Durante semanas, Horácio olhava para os frequentadores da casa do Marreta como se eles tivessem um segredo que o seu entendimento não conseguia descobrir completamente. Tudo quanto lhes ouvia o desnorteava. Podia lá ser á ser que as coisas viessem a ser como eles diziam? Mas, então, por que eles acreditavam naquilo, falando, às vezes, por meias palavras, como de um amor que estivesse no fundo dos seus corações e do qual não quisessem dizer tudo?
Algumas noites, no meio das conversas, Marreta referia-se a cartas que recebera de esperantistas de outros países e sempre dava a entender que eles esperavam também aquele dia de que todos, ali, falavam. Eram pessoas de cidades que Horácio raramente ouvira nomear – Charleroi, Praga, Atenas, Buenos Aires – e, porque se tratava de terras longínquas, tudo aquilo lhe parecia fabuloso, sem ligação concreta com a vida que eles viviam ali, na aldeia de rústicos casebres, de gentes pobres e de cabras e ovelhas. Cada noite, porém, ficava mais perplexo entre o que escutava e o que pensava. Quando era pastor, ouvira, algumas vezes, falar de greves, mas sempre aquelas notícias chegavam, a ele e aos outros que viviam entre os rebanhos da serra, como se fossem movimentos de homens que queriam apenas ganhar maior féria.
Marreta tinha muitos livros, quase todos sem capa, descosidos e ensebados, pois emprestava-os frequentemente. Às vezes, aparecia com um novo volume e, durante semanas, cada um dos operários ia-o levando para sua casa, até todos o lerem. Pelos comentários escutados, Horácio acabou compreendendo que muitas daquelas obras eram proibidas. E, então, sentira desejo de as ler também. […]
Horácio encostara-se a um dos prédios da rua e, enquanto esperava que Pedro se afastasse, viu Manuel da Bouça arrastar-se calçada acima, por entre a multidão que vinha do cemitério. Também aquela imagem do velho céptico o molestou. E, então, pôs-se a olhar para os outros homens, vestidos de negro, que passavam na sua frente, caras que lhe eram familiares, operários da Aldeia do Carvalho e da Covilhã, que ele conhecia da hora de saída das fábricas, dos diálogos no Pelourinho, das próprias ruas onde habitavam. À medida que iam passando, ele evocava as ideias, as embrionárias ansiedades que tinha ouvido a cada um deles, desde que deixara o cajado de pastor e viera trabalhar para as fábricas. E cada vez se apagavam mais, nos seus olhos, as imagens de Pedro e de Manuel da Bouça e cada vez ele se sentia mais confortado, mais confortado cada vez, por verificar que quase todos os que passavam na sua frente pensavam como Marreta e como ele próprio pensava agora.
Viu Tramagal, Ricardo e João Ribeiro a descerem a calçada – e juntou-se a eles. Ricardo disse-lhe:
- No sábado à noite, vamos fazer uma reunião, aqui, na Covilhã, em casa do Ildefonso. Precisamos de continuar… Compreendes? Precisamos de continuar… Não faltes!
- Lá irei – respondeu. E voltou a sentir-se menos abandonado do que quando vira, momentos antes, enterrar Marreta e muito menos do que quando, há anos, entrara para a fábrica. Parecia-lhe que uma secreta força, que ele desconhecia quando viera para ali, partia dos outros para ele e dele para os outros – ligando-os a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova esperança.
[…]
Ferreira de Castro, A Lã e a Neve
Vegetariano e esperantista, na defesa daquela forma de sustento e a pregar as vantagens de uma só língua para a Humanidade inteira, Marreta punha tanto fervor como se de credos religiosos se tratasse. Ele próprio cozinhava os seus vegetais e, vida sóbria, despendia a maior parte da féria em brochuras e correspondência com esperantistas estrangeiros, nas semanas em que um ou outro operário não lhe demandava a casa, a tartamudear um pedido de empréstimo. Conhecedores do seu feitio, raros lhe pagavam; e, se algum o fazia, era, quase sempre, para estar apto a pedir, noutra ocasião de aperto, uma quantia maior. Marreta estimava o dinheiro em relação apenas com o preço dos selos do correio. A sua grande volúpia seria poder escrever muitas cartas e receber muitas também dos esperantistas das outras terras. Como houvesse começado a corresponder-se com uns húngaros, tanto se apaixonara pela Hungria que acabara estudando vários aspectos da vida daquele país, mesmo os que não tinham afinidade alguma com o esperanto. E, durante mais de um ano, ao falar, citava a Hungria por tudo e por nada.
Na Aldeia do Carvalho poucos adeptos arrebanhara para a língua internacional e para o vegetarianismo não conquistara um só. Debalde ele jurava que, assim, seria melhor a saúde, mais longa a vida e menor a escravidão do ser humana às necessidades de cada dia. As mulheres, sobretudo, contrariavam-lhe a propaganda. Mais realistas do que os homens, afirmavam, desdenhosas, que fartas de batatas estavam elas desde que haviam nascido e que pena tinham de não poder comer carne todos os dias. Um bife! Uma perna de carneiro assada! Quem lhos dera!
Apesar dessas divergências, a quadrazita que Marreta habitava enchia-se de operários quase todas as noites. Fugindo ao ambiente de suas casas, ao ruído e movimento da filharada, os homens vinham para ali, naquele período do Inverno, jogar a bisca e cavaquear. A ausência de mulheres, de crianças e dos problemas domésticos dava-lhes uma efémera sensação de evasão. Além disso, se as doutrinas vegetarianas não os seduziam e se lhes produzia antecipada preguiça a ideia de estudar esperanto, eram fascinados por outras aspirações que Marreta juntava àquelas, numa catequese que ele exercia há muito tempo já. Muitas vezes Horácio ouvia-o referir-se a um mundo que viria, um dia, um mundo onde não existiriam nem pobres, nem ricos, nem grandes, nem pequenos – e onde todos teriam tudo quanto carecessem para viver sem apoquentações. Sempre a conversa ia para aquele ponto. Se se falava de alguém que fora despedido, de falta de luz nas casas e de lugares no Albergue, de pai que não tinha pão para os filhos, de pessoa que andava esfarrapada ou pedia esmola, sempre se falava desse dia em que tudo isso acabaria e os homens seriam mais felizes. Seriam todos como irmãos, uns não explorariam os outros e não haveria mais guerras.
Horácio admirava-se de que, parecendo Marreta tão inteligente, acreditasse naquilo, quando ele, que sabia muito menos, não podia crer, pois ricos e pobres houvera-os sempre e se alguém fosse tirar aos ricos o que lhes pertencia, logo viriam a guarda republicana e a polícia e poriam tudo como dantes. E mais surpreendido ficava ao verificar que todos os outros, interrompendo o jogo, iam lançando as suas palavras na mesma direcção das de Marreta. Até o Ricardo, sempre tão calado, tão metido consigo, estava, via-se logo, de acordo com aquilo. Alguns dos operários traziam jornais e liam coisas passadas em terras estrangeiras, notícias da guerra, que os outros escutavam em silêncio, enquanto o fulgor do lume lhes enrubescia as caras atentas. Depois, um e outro afirmavam que o dia podia chegar mais depressa do que muitos esperavam.
Durante semanas, Horácio olhava para os frequentadores da casa do Marreta como se eles tivessem um segredo que o seu entendimento não conseguia descobrir completamente. Tudo quanto lhes ouvia o desnorteava. Podia lá ser á ser que as coisas viessem a ser como eles diziam? Mas, então, por que eles acreditavam naquilo, falando, às vezes, por meias palavras, como de um amor que estivesse no fundo dos seus corações e do qual não quisessem dizer tudo?
Algumas noites, no meio das conversas, Marreta referia-se a cartas que recebera de esperantistas de outros países e sempre dava a entender que eles esperavam também aquele dia de que todos, ali, falavam. Eram pessoas de cidades que Horácio raramente ouvira nomear – Charleroi, Praga, Atenas, Buenos Aires – e, porque se tratava de terras longínquas, tudo aquilo lhe parecia fabuloso, sem ligação concreta com a vida que eles viviam ali, na aldeia de rústicos casebres, de gentes pobres e de cabras e ovelhas. Cada noite, porém, ficava mais perplexo entre o que escutava e o que pensava. Quando era pastor, ouvira, algumas vezes, falar de greves, mas sempre aquelas notícias chegavam, a ele e aos outros que viviam entre os rebanhos da serra, como se fossem movimentos de homens que queriam apenas ganhar maior féria.
Marreta tinha muitos livros, quase todos sem capa, descosidos e ensebados, pois emprestava-os frequentemente. Às vezes, aparecia com um novo volume e, durante semanas, cada um dos operários ia-o levando para sua casa, até todos o lerem. Pelos comentários escutados, Horácio acabou compreendendo que muitas daquelas obras eram proibidas. E, então, sentira desejo de as ler também. […]
Horácio encostara-se a um dos prédios da rua e, enquanto esperava que Pedro se afastasse, viu Manuel da Bouça arrastar-se calçada acima, por entre a multidão que vinha do cemitério. Também aquela imagem do velho céptico o molestou. E, então, pôs-se a olhar para os outros homens, vestidos de negro, que passavam na sua frente, caras que lhe eram familiares, operários da Aldeia do Carvalho e da Covilhã, que ele conhecia da hora de saída das fábricas, dos diálogos no Pelourinho, das próprias ruas onde habitavam. À medida que iam passando, ele evocava as ideias, as embrionárias ansiedades que tinha ouvido a cada um deles, desde que deixara o cajado de pastor e viera trabalhar para as fábricas. E cada vez se apagavam mais, nos seus olhos, as imagens de Pedro e de Manuel da Bouça e cada vez ele se sentia mais confortado, mais confortado cada vez, por verificar que quase todos os que passavam na sua frente pensavam como Marreta e como ele próprio pensava agora.
Viu Tramagal, Ricardo e João Ribeiro a descerem a calçada – e juntou-se a eles. Ricardo disse-lhe:
- No sábado à noite, vamos fazer uma reunião, aqui, na Covilhã, em casa do Ildefonso. Precisamos de continuar… Compreendes? Precisamos de continuar… Não faltes!
- Lá irei – respondeu. E voltou a sentir-se menos abandonado do que quando vira, momentos antes, enterrar Marreta e muito menos do que quando, há anos, entrara para a fábrica. Parecia-lhe que uma secreta força, que ele desconhecia quando viera para ali, partia dos outros para ele e dele para os outros – ligando-os a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova esperança.
[…]
Ferreira de Castro, A Lã e a Neve
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