sábado, 19 de novembro de 2011

O Dr. Bruno


Desta vez fora convidado o Dr. Bruno, grande especialista de olhos em Lisboa. E em jantares, piqueniques, passeios de automóvel e a cavalo, bailes e caçadas, duas semanas voavam…
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Já na casa dos quarenta, tinha ainda um ar jovem, cuidadosamente cultivado. Era uma destas naturezas ricas e pobres ao mesmo tempo, movidas por altas ambições que nunca realizam. Almas que põem tanta avidez no que desejam, tanta inquietação no que procuram, que tudo lhes foge das mãos no momento crucial. Se pudesse ser contada por miúdos, a sua vida daria uma crónica dolorosa de frustrações. Contudo, nenhuma outra mais rica de tenacidade, inteligência e audácia. Num faro quase infalível, antevia a hora e o lugar dos sucessos. E apresentava-se, numa disponibilidade que o tornava credor do maior quinhão do bolo. E, quando o êxito parecia certo, conseguido, a sofreguidão do salto afugentava a presa.
Desta vez viera também guiado por esse instinto adivinho. Tivera, casualmente, conhecimento da existência na família de uma figura complicada de mulher [Catarina], nova, solteira, bonita e poetisa. A princípio não tomara a sério o último predicado da moça.
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Mas depois o Dr. Bruno leu o nome dela num jornal literário, ouviu rasgados e autorizados elogios à sua arte, e, então, a ironia transformou-se em curiosidade, e a curiosidade em desejo de possuir. Bonita e rica significava muito, mas não era o bastante para a sua angústia de perseguidor de miragens. Precisava de um elemento mais, esse com autenticidade de dom. E se realmente se tratava de uma pessoa excepcional, artista ainda por cima, por que não fazer um esforço?
Infelizmente, a ave rara só chegava no dia seguinte, atrasada como sempre.
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Só quando o nome de Guiomar surgiu entre duas saraivadas de adjectivos – de um lado os homens a gabarem-lhe a elegância e a simpatia, do outro as mulheres a chamarem-lhe embirrenta e pretensiosa -, se mostrou interessado.
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Atirava as perguntas com ar negligente, num tom despreocupado, como que por desfastio. A simples notícia de que tinha a dois passos de si uma rapariga de quem se falava com tal discrepância, além de lhe espicaçar os brios de conquistador, fizera nascer no seu espírito, impenitente empreendedor de aventuras, mas experimentada vítima de sucessivos fracassos, o desejo de a conhecer, de a ter de reserva contra Catarina, de preparar uma espécie de porta de traição. Escusava, contudo, de mostrar o jogo.
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O Dr. Bruno, porém, necessitava de entrar naquela vida por alguma porta. Catarina começava a enervá-lo, a criar-lhe um estado de inibição que o irritava. Pela primeira vez encontrava uma natureza que se lhe opunha de antemão, só a existir, numa espécie de antítese humana. E tentava rasgar uma fenda na muralha.
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- Sou por temperamento e formação um homem objectivo… - Acredito pouco numa arte subjectiva.
- Toda a arte o é…
- Interessa-lhe, exactamente porque só entra em linha de conta com o seu egoísmo de criatura privilegiada, o que é lamentável.
Não punha sombra de sinceridade no que dizia. Era uma construção de momento, para enredar a corça esquiva. Em circunstâncias diferentes poderia defender o contrário com a mesma desenvoltura. Tanto se lhe dava dos poemas de Catarina como da cabeleira do dono da casa. Queria, sim, a mulher rendida a seus pés. Quando valorizava nela a condição de criadora, vislumbrava apenas a própria vaidade enfeitada com mais algumas penas. A beleza pura não lhe tocava a alma.
- Talvez tenha razão. Mas, que quer?
- Que acorde, ora essa!
O fio da meada, por mais que se esforçasse, fugia-lhe das mãos nervosas. Encontrava-se pela primeira vez diante de uma irredutibilidade. O adversário não argumentava, mal se defendia e, contudo, cada vez se lhe avantajava mais, como um fantasma que tirasse a força do próprio absurdo mágico do existir. As palavras que lhe dirigia pareciam bater de encontro a uma porta fingida. Por detrás, não havia ressonância.
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…tentou recuperar a calma perdida, o domínio de si. O caminho não era aquele, evidentemente, abrupto, áspero e raivoso. A razão estava farta de o saber. Mas descobrir o outro, o verdadeiro?
Lá no íntimo, uma voz que não queria ouvir segredava-lhe desde a primeira hora que não conquistaria a rapariga.
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E uma indignação impotente, paralela a um estranho sentimento de solidão irremediável, ameaçava submergir o hóspede. Não conseguia sintonizar-se com Catarina. Pelo contrário: cada vez a sentia mais distante.
[….]
O resto era Guiomar, que lhe aparecia no pensamento como uma possível tábua de salvação no jogo sentimental que iniciara. O coração nunca lhe pedira afectos verdadeiros. À sombra deles procurava apenas realizar não sabia ao certo que recôndita aspiração. Desde criança que lutava por esse impossível sem nome na sua própria consciência, e que se resumia numa imperiosa necessidade de afirmação e domínio. Se triunfasse algum dia, é possível que ficasse sem saber como utilizar a conquista. Enfadado e desiludido, acabaria por deixar cair, de qualquer modo, o troféu que com tanta veemência desejara. Mas falhara sistematicamente, e só não desanimava porque depois de cada fracasso, logo nova empresa o solicitava, criada pela sua ambição constante e versátil. E aí partia ele insofrido em busca dessa quimera, com toda a persistência passada. Fino observador, vira num relance, à chegada de Catarina, que ali o combate seria duro. Em vão procurava as pontas do invisível vincilho que junta as pessoas afins, que as faz solidárias mesmo quando o não querem ser. A linguagem de cada um dizia coisas opostas. Regiam-se por leis diversas.
[…]
[O orgulho ferido] obrigara-o a permanecer ali atento à melodia que lhe arranhava a alma como um silício. Por mais que fizesse, não conseguia sintonizar-se com o espírito criador que arrebatava os outros. A música em vez de o libertar, humilhava-o.
- É extraordinário, não é? – perguntou Raul a voltar o disco, sem admitir sequer a negativa.
- Sim, de facto. Se bem que eu seja por mundos mais positivos, mais lógicos…
- Não há nada mais lógico do que uma grande obra musical. Um largo de Haendel, por exemplo, é como um templo grego, de rigor e simetria…
- Claro. Claro.
Novamente a grafonola começou a rodar e novamente o maldito Bach encheu a sala da lógica que ele não entendia. Era uma tocata, executada a órgão, pungente e alada.
- Eu, este Bach, francamente! É bom, sem dúvida. Mas confesso…
Os íngremes degraus de uma escada erguida da humildade humana a um céu cristão de bem-aventurança, causavam-lhe tonturas. A transcendência nele, não subia, descia. Reduzia-se a um pragmatismo de utilidade pessoal, a sua, apenas mascarado muito ligeiramente, conforme as circunstâncias. Uma força que o arrastasse sem apelo e o conduzisse, cego, através de mundos onde nada tinha a fazer senão entregar-se, ditoso por já não ser mortal, ou sê-lo purificadamente, acicatava-lhe apenas o instinto de defesa. E fechava-se como um ouriço, hostil a cada nota sedutora. “Conversas com Deus consigo próprio antes da Criação”, chamara Goethe àquela música, isenta de sentimentos mesquinhos ou violentos. E nem mesmo por instantes ele podia renunciar às misérias da sua íntima natureza.
- Não gosta?!
- Gosto. Isto é…
Ia a atacar o génio só com o desplante dos audaciosos, sem poder mais, quando felizmente as mãos de Catarina, piedosas ou enfadadas, fecharam o aparelho.
[…]
Ao almoço, no dia seguinte, renovou a tentativa. Nada! Inábil e precipitado, só conseguira espantar a caça. Nem boa figura fizera. Reconhecia isso. De resto, até um cego via a triste realidade: Catarina fugira-lhe ainda mais. E como não podia viver num clima de derrota, a ideia de Guiomar surgiu-lhe definitivamente, nítida e vingadora, num aberto horizonte de triunfo.
[…]
Os amores do Dr. Bruno e de Guiomar começaram nessa noite. O médico não se comprometeu. Disse e fez apenas o bastante para encandear a rapariga, sem descer do tablado onde representava. Depois do entremez com Catarina – tão absurdamente falhado -, convinha-lhe não actuar ingenuamente, e apresentar a vítima já estrangulada à plateia boquiaberta. Por isso, a táctica consistia no realce de afinidades que ajudassem a papalva a saltar obstáculos embaraçosos, ou então num rosário de atenções que fizessem na sala o efeito de votos positivos numa eleição.
Lisonjeada e rendida a uma superioridade que firmava os alicerces na palavra fluente e no atrevimento intelectual, a coitada, que atravessava uma crise de indecisão, de pousio emocional, escancarou a alma de mulher à magnética impostura do actor.
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Miguel Torga, Vindima







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