terça-feira, 29 de julho de 2008

Conhecer ISABEL GOUVEIA


A PORTA ESTREITA

Sem saber porquê, o homem viu-se encerrado entre quatro paredes brancas. Sentaram-no numa cadeira velha, em frente de uma secretária velha, empurraram-na para diante e mostraram-lhe uma imensa papelada vazia. No espaço limitado pelas quatro paredes brancas encontrava-se ainda uma misérrima estante de portas de vidro. Por detrás destas, viam-se enormes lombadas de livros, deterioradas pela pressão dos dedos que, com sádica sofreguidão, buscando neles alguma coisa. Em frente da secretária havia ainda duas cadeiras cujo destino o homem ignorava.

Logo em seguida, assomou uma cabeça de ovo branco à porta estreita por onde se escoava a sala. Um indivíduo, de jeito ansioso, adiantou-se e sentou-se numa dessas cadeiras. O homem olhou-o, perturbado e distante, e a intrometida personagem desatou a língua numa verborreia monótona e tola. Como esta não produzisse efeito, levantou-se, agarrou o homem pela gola do casaco, inclinou-lhe a cabeça para a frente, mergulhando-a na imensa papelada vazia com uma pancada de osso quebrado. Depois, ergueu-lha com ar de triunfo.

O nosso homem começou, então, a compreender o motivo por que estava ali. Prestou mais atenção à papelada vazia e, aquém e além, notou-lhe umas manchas escuras. Impressionado, procurou observá-la à transparência. Não havia dúvida de que os papéis não estavam de todo vazios. Imediatamente, porém, percebeu que seriam precisos anos e anos para decifrar as manchas escuras, e não tinha outro remédio senão sujeitar-se a esse enfadonho trabalho. Todos os dias viriam alguns indivíduos como aquele: impacientes, coléricos, rubicundos.

Então, embora sem lhe atingir a finalidade, agarrou-se com unhas e dentes ao estudo daquela imensa papelada branca, numa sala de paredes brancas, cujo único escoadouro era aquela porta onde assomavam cabeças rapadas de homens estranhos. Até que um dia, quando pensava que havia conseguido começar a realizar os seus intentos, foi visitado por um homenzarrão de fato elegante, sapatos da última moda e farta cabeleira preta, que lhe pegou abruptamente na papelada e pôs-se a decifrá-la em voz alta, numa linguagem confusa. Fazia gestos teatrais, enquanto recitava, de forma incompreensível, o conteúdo das manchas escuras para um pseudo-auditório que o homem representava. Este perguntou-lhe porque permitia que levasse anos e anos a descobrir o sentido daquelas coisas, e o homenzarrão, de cara fechada, respondeu-lhe com um monossílabo agudo.

Depois desta estranha entrevista, o nosso homem pensou que o melhor seria estudar a "língua" que o outro falava. Assim, talvez fosse possível, numa futura visita, apreender por completo e fixar o sentido das manchas. Levou anos e anos nesse trabalho, até que um dia, perplexo, percebeu que lhe tinham levado a papelada vazia e deixado a secretária vazia. As lombadas da estante misérrima continuavam sem conteúdo. À sua volta havia apenas quatro paredes brancas e um único escoadouro possível: a porta estreita que nunca tentara transpor.

Isabel Gouveia, A Porta Estreita

1 comentário:

Miss Marple disse...

Muitas vezes, aceitamos as situações mais absurdas, deixamos que os outros nos conduzam, e não compreendemos que a porta está ali: é só empurrá-la e sair para a luz.