segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Conhecer PHILIP ROTH


[…]
É claro que chorou no funeral e teve consciência de quanto era colossal aquilo que, de maneira tão inesperada, fora levado. Quando o pastor leu, juntamente com passagens bíblicas, um conjunto de excertos de Júlio César do amado volume de peças de Shakespeare do seu pai – um livro enorme, com uma encadernação de couro mole que, quando Coleman era pequeno, lhe lembrava sempre um cocker spaniel -, o filho sentiu como nunca a majestade do pai: a grandeza tanto da sua ascensão como da sua queda, a grandeza que, como caloiro universitário ausente havia um escasso mês do pequeno reduto da sua casa em East Orange, começara, ainda muito ao de leve, a ver como na realidade era.

Os cobardes morrem muitas vezes antes de morrerem;
O corajoso só uma vez o sabor da morte prova.
De todos os prodígios de que já ouvi falar,
O mais estranho me parece que temam os homens;
Posto que a morte, um fim inescapável,
Virá quando tiver de vir.

A palavra “corajoso”, com a intonação que o pregador lhe deu, despojou Coleman de todos os seus viris esforços para um autodomínio sóbrio e estóico e pôs a nu a sua saudade daquele homem que lhe era mais do que todos chegado e nunca mais voltaria a ver, o pai incomensurável que sofria em segredo e falava com tal facilidade e arrebatamento que o seu dom da palavra bastara para, inadvertidamente, incutir nele a vontade de ser admirável. Coleman chorou com a mais fundamental e transbordante das emoções, irremediavelmente reduzido a tudo aquilo que lhe era insuportável. Quando, adolescente, se queixava do pai aos amigos, caracterizava-o com muito mais desdém do que sentia ou tinha, sequer, a capacidade de sentir; aparentar um modo impessoal de julgar o próprio pai era mais um dos métodos que divisara para inventar e proclamar invulnerabilidade. Mas sentir que já não estava circunscrito nem definido pelo pai era como descobrir que todos os relógios para que olhava tinham parado e não existia maneira alguma de saber que horas eram. Quer lhe agradasse quer não, era como se, até ao dia em que chegara a Washington e entrara na Howard, tivesse sido o pai que fizera em seu lugar a sua história. Agora teria de ser ele a fazê-la, e essa perspectiva era aterradora. Mas depois deixou de ser. Passaram três dias terríveis e assustadores, passou uma semana terrível, duas semanas terríveis, e de repente, sem mais nem menos, o que era aterrador tornou-se estimulante.



“Como evitar aquilo/Cujo fim é determinado pelos poderosos deuses?” Versos também de Júlio César, que lhe tinham sido citados pelo pai, e, contudo, só com o pai na sepultura ele se dignara finalmente a escutar, mas que, ao escutá-los, de imediato engrandecera. Isto tinha sido determinado pelos poderosos deuses! A liberdade de Silky. O Eu puro. Toda a subtileza de ser Silky Silk.
Descobrira em Howard que não era apenas um preto para Washington D.C. – e, como se esse choque não tivesse sido suficientemente forte, descobriu que era também um negro. Um negro de Howard, para mais. Da noite para o dia, o puro Eu tornou-se parte de um nós com toda a solidez dominadora do nós, e Coleman não quis ter nada a ver nem com ele nem com outro nós opressivo que surgisse. Saímos finalmente de casa, a Ur de nós, e encontramos outro nós? Outro lugar que é exactamente como esse, o substituto desse? Enquanto cresceu em East Orange foi sem dúvida um negro, uma parte muito integrante da sua pequena comunidade de cerca de cinco mil almas, mas no boxe, na corrida, no estudo, em tudo aquilo em que se concentrara e fora bem-sucedido, nas suas andanças solitárias por todos os cantos de Orange e, com ou sem Doc Chizner, para o outro lado da fronteira de Newark, foi, sem pensar nisso, também tudo o mais. Foi Coleman, o maior dos grandes pioneiros do Eu.
Depois partiu para Washington e, no primeiro mês, foi um preto e nada mais e foi um negro e nada mais. Não, não. Viu o destino à sua espera e não o quis. Compreendeu-o instintivamente e recuou espontaneamente. Não podemos deixar o grande eles impor-nos a sua intolerância, do mesmo modo que não podemos deixar o pequeno eles tornar-se um nós e impor-nos a sua ética. Não à tirania do nós e dos nossos discursos e de tudo que o nós pretende fazer desabar sobre a nossa cabeça. Jamais, para ele, a tirania do nós desejosos de nos absorver, do nós moral coercivo, inclusivo, histórico e inelutável com o seu insidioso E pluribus unum. Nem o eles da Woolworth, nem o nós de Howard. Em vez dele, o Eu puro com toda a sua agilidade. Descoberta de si: era esse o directo à pança. Singularidade. A luta apaixonada pela singularidade. O animal singular. A relação deslizante com tudo. Não estática, mas deslizante. Conhecimento de si, mas oculto. Haverá alguma coisa mais poderosa?
“Cuidado com os idos de Março.” Treta. Cuidado com coisa nenhuma. Livre. Com ambos os sustentáculos perdidos – o irmão mais velho do outro lado do mar e o pai morto -, sente-se revigorado e livre para fazer o que quiser, livre para atingir o maior dos objectivos, sente nos próprios ossos a confiança necessária para ser o seu Eu individual. Livre numa escala inimaginável para o seu pai. Tão livre quanto o seu pai fora oprimido. Livre agora não só do pai mas também de tudo o que o pai tivera sempre de suportar. As imposições. As humilhações. As obstruções. A ferida, a dor, a atitude, a vergonha: todas as angústias secretas do fracasso e da derrota. Em vez disso, livre no grande palco. Livre para seguir em frente e ser grandioso. Livre para representar o drama sem limites e autocaracterizador dos pronomes nós, eles e eu.
A guerra continuava e, a não ser que terminasse de um momento para o outro, ele acabaria por ser recrutado. Se Walt estava em Itália a combater contra Hitler, por que não haveria ele de lutar também contra o sacana? Corria o mês de Outubro de 1944 e ainda lhe faltava um mês para completar 18 anos. Mas ser-lhe-ia fácil mentir a respeito da idade, não seria problema nenhum atrasar um mês a data do seu nascimento, passando-a de 12 de Novembro para 12 de Outubro. E, a contas com o desgosto da mãe – e com o abalo que lhe causara ao abandonar a universidade -, não lhe ocorreu imediatamente que, se quisesse, também poderia mentir a respeito da sua raça. Tirar partido da sua pele da maneira que lhe apetecesse, atribuir a si mesmo a cor que quisesse. Isso só lhe veio ao espírito quando estava sentado no edifício federal de Newark, com todos os impressos para se alistar na Marinha à frente e, antes de os preencher, começou a lê-los cuidadosamente, com a mesma atenção meticulosa com que estudara para os exames liceais, como se tudo quanto fizesse, de grande ou pouca monta e tomasse-lhe o tempo que tomasse, fosse a coisa mais importante do mundo. E nem mesmo então lhe ocorreu a ele. Quem primeiro se deu conta foi o seu coração, que começou a bater com força como o coração de alguém na iminência de cometer o seu primeiro grande crime.

Philip Roth, A Mancha Humana

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