sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Conhecer DIAS DE MELO

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Meu Pai tinha trabalhado na América debaixo da barba alheia, debaixo da barba brutal dos bossas, cada bossa o rosto que se via do patrão milionário em que ninguém punha a vista em cima e a quem todos serviam, os imigrantes a meio peso, linguagem do México, o mesmo é dizer a meio dólar por dia (trabalhador americano de nascimento, já nesse tempo, finais do século passado, princípio deste, nem por trinta dólares por mês o apanhavam), os emigrantes pediam trabalho, trabalhavam como escravos e não reclamavam na soldada, e eram tantos, nem meu Pai conseguia imaginar quantos, de todos os países do velho mundo, a trabalhar para cada patrão milionário, muitas vezes um patrão que começara por ser também imigrante e trabalhador, um trabalhador sem escrúpulos, e concluía meu pai ser preciso o trabalho de dezenas de trabalhadores para, de um trabalhador sem escrúpulos tornado patrão modesto, fazer um pequeno milionário, maior, cada vez maior, à medida que, de pequeno, se ir tornando grande até que acabavam por ser multidões de trabalhadores escravos a trabalhar para o pequeno cardume dos poderosos multimilionários donos do mundo, e infinita a multidão dos trabalhadores que os servem, arrastando-se na lama da miséria, para que eles se mantenham no fausto da mais escandalosa opulência. Com isto metido na cabeça se arrebanhou com os trabalhadores que entendiam que isto não estava certo e que se aventuravam a lutar para que deixasse de ser o que sempre fora. Eram muitos com ele na América, na Califórnia, milhões, muitos milhões no mundo inteiro.
Quem se mete nestes sarilhos nem sempre consegue trabalho com facilidade, e sem trabalho, mais ou menos assegurado, não se arrecada muito dinheiro. Daí que, no regresso à ilha, meu Pai não fosse o calafona do costume, forrado de dólares e presunção pesporrente. E aqui uma coisa: na verdade, ao que dizem, os calafonas de volta, se traziam mil dólares consigo já era muito bom – e, a ganharem meio dólar por dia, espanta como tanto lograram arranjar. Tanto… Pouquíssimo na terra da América, aqui, no meio da nossa escassez, até dava para deitarem figura por uns tempos. O que trouxe meu Pai, não sei. Deu-lhe para comprar uns bocadinhos de terra e, penso já o ter dito, reabrir a loja tristemente encerrada pelo pai e fundada pelo avô brasileiro por meados do século passado, talvez, hoje, a mais antiga do Pico, isto tenho a certeza de já ter dito.
Segue-se que, lá por, no regresso da América, ter comprado uns palmos de terra, coisa pouca, e se ter estabelecido com fazendas e calçado na loja que fora do pai e do avô, nunca por nunca se teve meu Pai na conta de mais que ninguém, nunca por nunca deixou de se ter na conta de igual a todos, fosse um pobre de pedir ou qualquer de mais aquela, assim, e não como comerciante, pequeno comerciante, mas comerciante, que uns furos acima dos demais na conta de burgueses da pequena burguesia rural se têm os comerciantes das aldeias, mesmo, ou mais que todos, os vindos da maior das misérias, alguns os conheci e conheço. Com isto, nem minha Mãe por ter nascido como nascera e ser filha de quem era, nem meu Pai por ter na América penado o que penara, vivido o que vivera, sido o que fora, jamais se consentiram considerar, muito menos que nós, os filhos, nos permitíssemos considerar como pessoas que não fossem da família os que nos ajudavam nos nossos trabalhos. Eram-no, pelo sangue, meu primo João Silveira, por afinidade o Tio Jorge, tanto como eles, sem laços de sangue nem de afinidades, além do José Chíchero, o Armando (um dos homens mais inteligentes que tenho conhecido, foi o primeiro a me abrir os olhos da sensibilidade e do pensamento e, de uma vez por todas, para a poderosíssima força da estupidez e do poderio do dinheiro que nos subjuga aqui e no mundo inteiro)…
- …
- Não estou vendo as coisas com olhos avinagrados, estou a vê-las como, por mais que digam ou deixem de dizer, elas tardam em deixar de ser. Adiante.
- …
- … o Armando, o Manuel Madeirinha, o Manelinho de S. Miguel, o ti Manuel d’Ávila Moita (do ti Manuel d’Ávila Moita, Avô da minha defunta companheira, também tenho muito que contar, fica para outra), todos eram, em nossa casa e em pé de igualdade, com ou sem laços de parentesco, pessoas de família.
Quando comecei a trabalhar na terra, andaria pelos oito, nove anos, o mais assistente de todos, e por longos anos o foi, era o José Chíchero. Vinha connosco dois dias certos por semana, disse-o, em sua companhia trabalhava, a ele me afeiçoava, e afeiçoado fiquei para sempre, sabia lidar comigo, tratava-me de igual para igual, nem que fosse eu pessoa crescida, da sua idade, era paciente, explicava-me o que lhe pedia que me ensinasse, fosse o que fosse, para ele não havia coisas feias em que se não podia falar a crianças, assim, a seu modo com seriedade, me explicou coisas do sexo, do sexo e do amor, dantes só tinha ouvido rapazes mais velhos, um pouco mais velhos, disto falarem de maneira parva e canalha, vocês sabem como é que, nisto, tudo continua na mesma. Contei-lhe o que sentia pela Rosa do Mirante, envergonhado, a gaguejar, sem saber bem dizer o que sentia, veio, com o tempo, a ser a minha primeira grande paixão, o José Chíchero ouvia-me sem se rir, encorajava-me a falar, disse-lhe tudo o que lhe tinha para dizer lá conforme pude, aconselhava-me como se me não estivesse aconselhando, com um sorriso bom e palavras mansas:


- Isso é amor. O amor começa por isso, pelo bichinho com comichão. Mas o amor não é só isso, é muito mais. É uma ferida, ao mesmo tempo uma flor dentro da gente. A raiz e o sangue da vida. Não há nada mais importante que o amor. Tanto que, sem o amor, não há vida e a vida que existe deixaria, sem amor, de existir. O homem nasceu para amar e para viver no amor do homem. Por isso a vida do homem sem a mulher, o amor da mulher, a seu lado, nem chega a ser vida, não tem sentido, nem vida da mulher o é, o tem, sem o amor do homem consigo. Vidas assim são vidas sem vida, vidas mortas como qualquer costa deserta de onde nunca se avista ao largo uma vela branca, o fundo branco de um navio no horizonte deserto do mar.

Nem sei como podia o José Chíchero falar desta maneira, mas falava quando falava de amor. As palavras, as frases, não seriam estas, p-á-pá-santa-justa, não podiam ser, era um homem simples, nem sabia ler, nem sequer assinar o seu nome, agora a ideia, essa, era, sem tirar nem pôr, eu, vocês bem vêem, com a idade que no tempo tinha, começara a trabalhar na terra com o José Chíchero aos oito, nove, iria nos doze, treze, nada entendia de tudo aquilo como deve ser aquilo entendido, embora aquilo me entrasse no coração (por muito estranho que pareça, há coisas que nos tocam, entram no coração, sem que a gente as entenda, ou julgue que as não entende sem que a gente saiba porquê, ou julgue que não sabe porquê, sei lá, talvez pela imensa força da imensa verdade que carregam consigo) e no coração me ficasse para hoje o entender em toda a sua extensão à custa de experiências várias, por mim sofridas, nem todas de boas recordações.

[…]

Dias de Melo, Reviver: Na Festa da Vida a Festa da Morte
(Calheta de Nesquim (Pico), 08.04.1925–Ponta Delgada (S. Miguel), 24.09.2008]

1 comentário:

Cris disse...

Nossa!!!Que bela homenagem minha querida.Só vindo mesmo de ti.
Muitos beijos de coração para coração.