terça-feira, 10 de junho de 2008

Conhecer CARLOS TOMÉ


A SESSÃO SECRETA

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O casal abranda o passo. Ela mantém-se meio encolhida, cosida ao corpo dele, como se procurasse protecção. Ele observa, sob o ombro, esquadrinhando os recantos mais escuros da rua, já de si mal iluminada.
Os dois param à porta de uma casa sem mais sinais de vida interior do que uma ténue luz numa janela do piso superior. São dez da noite, em ponto.
Com o punho fechado, ele bate duas vezes, faz uma pausa, dá mais duas batidas, faz nova pausa e bate mais uma vez. É, obviamente, um código.
A porta abre-se, de imediato, e os dois entram rapidamente. Dentro está um outro casal, que sem uma palavra os precede pelo interior da casa. Deduz-se, pelo caminhar decidido dos quatro, que aquele trajecto já foi feito muitas vezes. Dirigem-se ao que aparenta ser um quarto de arrumações. Pouco mais tem do que uma mesa, algumas cadeiras e uma pequena cama de estilo militar. A falta de janelas e a fraca iluminação conferem-lhe um ar claustrofóbico.
Uma vez chegados, a porta é fechada à chave. O anfitrião dirige-se a um monitor de televisão, liga-o e certifica-se de que a imagem está a chegar em boas condições. Dá-se por satisfeito ao ver, no ecrã, a entrada da própria casa e um pedaço de rua, onde agora se vê passar um cão vadio.
- Tudo em ordem – diz ele, baixinho.
Os quatro cumprimentam-se, então, trocando abraços, beijos e saudações no mesmo tom de voz baixo.
- Como estão vocês? A tua tosse já passou? E as crianças, estão de saúde?
Os quatro conversam agora, animados, mas discretamente, sem nunca elevarem as vozes mais do que em tempos distantes se utilizava nos confessionários. Estão calmos e descontraídos, apesar dos olhares que vão deitando ao monitor da câmara instalada sobre a porta da rua.
O anfitrião serve bebidas. Os quatro vão beberricando nos intervalos da conversa, que flui quase só acerca de banalidades do quotidiano de cada um. Um observador, por mais desatento, depressa notaria que são muito amigos.
Quando as bebidas terminam, o anfitrião dirige-se à cama e anuncia:
- Vamos lá, então!
De baixo do colchão, tira uma pequena caixa, que trata com tal cuidado que dir-se-ia recear quebrá-la. Os quatro sentam-se à mesa, com indisfarçado entusiasmo. Uma das mulheres adianta-se, abre a caixa e exibe, com um sorriso, um velho baralho de cartas. Tão velho que falta um canto ao sete de paus e há uma nódoa negra no valete de ouros, pelo que são facilmente identificáveis.
Mas é o que resta aos quatro. Uma relíquia do princípio deste século, guardada no dia em que as autoridades decidiram proibir e mandar destruir todos os baralhos de cartas, considerados antipedagógicos, transmissores de doenças e, por isso, socialmente inaceitáveis.
Desde esse triste dia 1 de Janeiro de 2005, já lá vão onze anos, a caça feroz aos baralhos de cartas tem levado muita gente à barra dos tribunais e à vergonha de ser apontada como disseminadora de doenças e socialmente desprezível.
Em substituição dos baralhos, foi fomentada e, até, subsidiada a aquisição de consolas electrónicas com os mais populares jogos, desde a plebeia “sueca” até à sofisticada “canasta”, sem esquecer, claro, o “vinte-e-um”, o “king”, o “solitário” e muitos outros.
Mas quem consegue jogar “bridge” numa consola? Onde está o gozo táctil do cartear? Como fazer aquele estalido sacaninha com a carta, só para vincar superioridade e irritar ainda mais os adversários?
No quarto, Norte abre:
- Um pau!
Os dois casais são resistentes. Inveterados jogadores de “bridge”, há quase sete anos vêm fazendo estas sessões secretas, mesmo sabendo que podem ser descobertos pela temível BPC, a Brigada do Politicamente Correcto.
O risco é grande, mas o apego ao “bridge” ainda é maior. Tão superior que, aos quatro, o que mais preocupa é o facto do baralho estar a ficar cada dia mais estragado. Ao ponto de também já se começar a notar falhas no rei de copas. O que é grave.
Carlos Tomé, A Noite dos Prodígios e outras histórias,
Salamandra (2002)


1 comentário:

Unknown disse...

Este conto parece premonitório. E escrito antes da lei antitabaco e da existência da ASAE.
Muito interessante!