quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Conhecer ALDOUS HUXLEY

UM AVISO
Na próxima geração, acho que
os senhores do mundo descobrirão
que o condicionamento infantil
e as narcoipnoses são mais eficazes,
como instrumentos de governo, do que
os garrotes e os calabouços, e que a
avidez de poder pode ser saciada tão
cabalmente se, através da indução, se
conseguir que as pessoas amem a sua
escravidão como se a chicotada e a
pontapés lhes fosse imposta a
obediência.
[Aldous Huxley, 1949]

Aldous Huxley
Godalming (Reino Unido), 26 de Julho de 1894
Los Angeles, 22 de Novembro1963

****************

- E é aí – disse sentenciosamente o director […] – que está o segredo da felicidade e da virtude: gostar daquilo que se é obrigado a fazer. Tal é o fim de todo o condicionamento: fazer as pessoas apreciar o destino social a que não podem escapar.
[…]
O director pôs o interruptor na primitiva posição. A voz calou-se. Apenas o seu longínquo fantasma continuou a murmurar debaixo dos oitenta travesseiros.
- Ouvirão isto repetido ainda quarenta ou cinquenta vezes antes de acordar; depois novamente na quinta-feira; e igualmente no sábado. Cento e vinte vezes, três vezes por semana, durante trinta meses. […]
- Enfim, a hipnopedia, a maior força moralizadora e socializadora de todos os tempos.
[…]
- Até que o espírito da criança seja essas coisas sugeridas e que a soma dessas coisas sugeridas seja o espírito da criança. E não apenas o espírito da criança, mas igualmente o espírito do adulto, e para toda a vida. O espírito que julga, deseja e decide, constituído por essas coisas sugeridas. Mas todas essas coisas sugeridas são aquelas que nós sugerimos, nós! - Que o Estado sugere.
[…]
- Para governar, é necessário deliberar, e não perseguir. Governa-se com o cérebro, nunca com os punhos. Houve, por exemplo, o regime de consumo obrigatório…
[…]
- Cada homem, cada mulher e cada criança tinha obrigação de consumir uma determinada quantidade por ano. No interesse da indústria. O resultado…
“Mais vale destruir que conservar. Quanto mais se remenda, pior se fica. Quanto mais se remenda…”
[…]
- A objecção de consciência em grande escala. Qualquer coisa servia para não consumir. O regresso à Natureza.
[…]
- O regresso à cultura. Sim, autenticamente à cultura. Não se pode consumir muito se se fica tranquilamente sentado a ler livros.
[…]
- Oitocentos praticantes da vida simples foram abatidos à metralhadora em Golden Green.
[…]
- Depois houve o célebre massacre do Museu Britânico. Dois mil fanáticos da cultura mortos com gases de sulfito de dicloroetilo.
[…]
- Finalmente […], os administradores verificaram a ineficácia da violência. Os métodos mais lentos, mas infinitamente mais seguros, da ectogénese, do condicionamento neo-pavloviano e da hipnopedia…
[…]
- Utilizaram-se enfim as descobertas de Pfitzner e de Kawaguchi. Uma intensa propaganda contra a reprodução vivípara…
[…]
- Acompanhada por uma campanha contra o passado, pelo encerramento dos museus, pela destruição dos monumentos históricos […]
- Tais são as vantagens de uma educação verdadeiramente científica.
[…]
- Seis anos mais tarde, foi produzido comercialmente. O medicamento perfeito.
[…]
- Eufórico, narcótico, agradavelmente alucinante.
[…]
- Podem obter uma fuga da realidade cada vez que disso sentirem necessidade e voltar a ela sem a menor dor de cabeça nem vestígios de mitologia.

Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo (1932)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Conhecer JOSÉ RÉGIO


[…]
A fantasia e o sonho são aves que em verdade se podem alimentar das nossas próprias miséria: tal desejo temos de nos não sentirmos miseráveis! Porém o desgosto demasiado premente sufoca-os; escorraça-os a contemplação ou preocupação demasiado imediata de um estado infeliz.
[…]
O desgosto, a raiva e a revolta que actualmente o corrompiam – é que lhe faziam sentir um áspero prazer em ser injusto.
[…]
Lelito não poderia esquivar-se hoje àquela obsessão da injustiça que praticara. A grossaria não estava no seu feitio; mas fora grosseiro (repetia consigo próprio que fora grosseiro, que fora grosseiro…) para com um desconhecido que o procurara, talvez, amigavelmente.
[…]
Em suma: um triste; um ; talvez, em certos aspectos um irmão. E fora esse que ele repelira do modo mais humilhante, mais arrogante, quando, vencendo uma timidez que não podia deixar de o caracterizar, o outro ensaiara aquela tentativa para aproximar as suas duas solidões, remediar a sua comum timidez…
[…]
Certa hesitação cobarde, irracional, que tantas vezes nos faz sacrificar ao comodismo de um momento a paz ou satisfação de vários dias, meses, anos, lhe insinuava que adiasse para outra oportunidade a reparação que decidira oferecer ao ofendido.
[…]
Um pungente arrependimento apertou, como uma garra, a garganta de Lelito. Lelito suspeitou que esse homem tinha uma ferida, e ele lha pisara como sem dar por isso.

José Régio, A Velha Casa I


[…] Lelito descobria com alvoroço – principalmente, com uma espécie de apaixonada gratidão, dirigida nem sabia a quem, a quê, - que outros tinham sofrido de inquietações, tormentos, perplexidades, agonias, enlevos ou desesperos idênticos aos seus; superiores aos seus. Assim, através do espaço e do tempo, se reconhecia como um elo vivo numa cadeia de humanidade angustiada, palpitante, roída pela fome de Absoluto. Capazes, muito capazes eram esses seus grandes irmãos mais velhos de dar fascinante expressão literária quer à sua angústia, quer ao seu fogo! Comparando com tais Obras os papéis em que, à maneira de diário, confissões ou memórias, e aliás com longas interrupções de sentido, ia registando ora as mais amplas ansiedades do seu espírito, (assim as julgava ele, naquela zona interior menos atingida pela convencional modéstia) ora os pequenos factos, puerilmente caricaturados em grande, da sua vida quotidiana, por certo não podia deixar de reconhecer Lelito, ai dele!, a sua desanimadora inferioridade no exprimir-se. Nem por isso deixava de lhes ser comum, a ele e a tais heróis, o fundo dos sentimentos, pensamentos, aspirações. A verdade é que não estava tão só como o julgara! Não era tão anormal como, às vezes, o temia! Outros, admirados por grandes, haviam destapado ao mundo abismos perante quais deixavam de parecer monstruosas as suas pequenas perversões de sensibilidade, ou complicações de sentimentos. Outros haviam descido muito mais fundo os sinistros degraus do Desespero, e subido mais alto, sempre mais alto, as escadas sem suporte do Ideal. Mas se, com os seus poucos anos e uma experiência limitada às paredes duma velha casa, (ou dum colégio do Porto) sentira já coisas tão semelhantes às expressas em romances e poemas célebres…; melhor: se já cá chegara a pensar, embora com as inevitáveis hesitações e deficiências, coisas que, no fundo, eram base sobre que erigiam grandes pensadores as suas esplêndidas arquitecturas de ideias e relações, - é porque pertencia àquela família dos heróis dos romances, dos poemas, dos sistemas…

José Régio, A Velha Casa II


[…] Não há problemas senão os de cada um.
- Há os problemas colectivos da fome e do frio; da doença e da velhice desamparada; da miséria moral; do atraso intelectual; da redução do homem ao animal e ao servil… […] posso dar-te razão noutro ponto: Não há senão os problemas individuais. Os problemas da fome, do frio, da velhice, da infância ou da doença desamparada, do atraso mental, da imoralidade provocada pela miséria, da escravidão ou sufocação do mais fraco sob o dinheiro e o poder… começam por ser problemas individuais; problemas de cada um. Não lhes chamo colectivos senão porque são comuns a muitos indivíduos! Talvez, também, porque podem atormentar a consciência moral doutros indivíduos, os melhores, que assim se apropriam deles. Os que mais concretamente os sofrem, porém, é que nem sempre têm essa consciência…
[…] E deveria aquele bem comum com que desde a adolescência sonhava – aquela vaga, distante Humanidade pela qual desde sempre lutara, e que tantas decepções lhe dava quando tratada de perto – fazê-lo desprezar a felicidade ou infelicidade dos seus mais próximos parentes? Entre tantas outras, uma particularidade tivera ocasião de observar pela vida fora, no seu convívio com muito diversos camaradas, e até de nacionalidades diversas: E era que muitas vezes os homens que mais se empenham – e em verdade lutam – pelo progresso social da humanidade, são incompreensivos e frios, até duros, no contacto directo e individual com os seus semelhantes. E que, pelo contrário, se revelam tolerantes e até generosos, até caridosos, nesse contacto pessoal, muitos dos que, perante o novo ídolo, ou abstracção, da Humanidade, (até perante uma colectividade real) se mostram cépticos, indiferentes, desdenhosos. Não se deixar escorregar nem a uma nem a outra destas limitações, - eis o que sonhava! Sabia, agora, que só nessa largueza do coração e do espírito se poderia verdadeiramente realizar a sua vida. E as decepções não deviam enfraquecê-lo. Os desânimos e tédios de momento (nem que dum momento arrastado longos meses…) não deviam fazê-lo perder a confiança. Tinha de sempre esperar! nem que humanamente desesperado; sempre crer! mesmo quando a sua crença humanamente lhe não aparecesse senão como aparência de crença, - um mero proceder como se cresse… Cada vez mais lhe dizia a experiência que os homens são fracos, mesquinhos, volúveis, loucos, desgraçados, viciosos…, e que talvez, dum certo ponto de vista, nem valha a pena lutar por eles! No fim de contas, não se acomodam com desesperadora facilidade a toda a espécie de vilania? Mas seria razão para não lutar, desde que, nesses pobres seres infelizes, tão ingratos que chegava a aborrecer como importunos, até a odiar e perseguir como inimigos, os seus melhores amigos, se não deixasse de reconhecer qualquer gérmen de ultrapassagem, qualquer luzinha, mesmo débil, que imprescindível era não deixar apagar-se…?



[…]
Os homens como eu, que não podem renunciar a um ideal… que acabam por compreender que não podem… (está claro que falo dum ideal moral) por isso mesmo não podem renunciar a uma vontade de aperfeiçoamento próprio. Sim, têm necessidade de se reverem no espelho do seu ideal… ou da sua consciência… e não ficarem muito descontentes consigo: tão descontentes que desanimem. Isto os pode levar a hipocrisias… confusões… Talvez eu ainda não tenha pensado nisso suficientemente. Mas umas coisas não invalidam as outras, porque tudo em nós é impuro. Não podem esses mesmos homens também alguma coisa fazer pelo bem dos outros? pelo aperfeiçoamento geral?...
- O tal bem dos outros é terem que comer; que vestir; onde morar; e não serem vexados impunemente.

José Régio, A Velha Casa III

domingo, 5 de outubro de 2008

Conhecer JOÃO AGUIAR

Ainda não logrei definir com exactidão o que torna este lugar tão especial. Talvez a disposição das árvores, o modo como as suas cores se misturam sob a luz do Sol, talvez o jogo de sombras, talvez a folhagem – ou, neste momento, os ramos desnudados -, talvez o silêncio, porque é raro ouvir aqui outro som que não seja o das próprias árvores tocadas pelo vento.
Não sei. Se acreditar nos efeitos do geomagnetismo... não, nada de explicações científicas.
Lembro-me da primeira vez que aqui vim. Seguia de carro pela estrada, avistei o cruzeiro, que despertou a minha atenção – nesse tempo eu era um recém-chegado a Vale de Monges. Reduzi a velocidade, acabei por parar, o carro ficou estacionado mais ou menos no sítio onde hoje está. Voltei a olhar para o cruzeiro, que se ergue bizarramente, não à beira da estrada, mas no meio de um terreno coberto de mato rasteiro. E avistei, à distância, em pano de fundo, a mancha verde. Saí do carro sempre a olhar para ela, atravessei a estrada sem deixar de a olhar e caminhei até ao ponto exacto onde me encontro agora. Vim puxado, ou empurrado, por uma força que não sabia se me era exterior ou se era um impulso da minha fantasia que eu inconscientemente vestia com as roupagens da atracção magnética.
Há aqui, pensei então, uma configuração especial que evoca a entrada de um templo: uma espécie de propileu. Mas esta configuração, pensei ainda, não é, ou não é exclusivamente, física. A evocação não está na forma como as árvores se encontram dispostas nem nos contornos e acidentes do terreno. Não é a imagem concreta das coisas, é a imagem que as coisas desenham dentro de mim.
Hoje, após tantas visitas solitárias a este lugar, hoje penso o mesmo. Talvez por vergonha, não mais voltei a fazer o que então fiz. Ajoelhei-me primeiro, depois prostrei-me de olhos fechados, as mãos coladas à terra, e rezei – digo rezei porque todo o discurso dirigido a Deus, ainda que o nome não seja pronunciado, deve ser considerado uma oração.
Não voltei a fazê-lo nem o poderia fazer neste momento sem, prosaicamente, ficar encharcado. Isso é pouco importante, porém… O lugar conserva o mesmo encanto, o silêncio feito de murmúrios é o mesmo, o mesmo é o verde luminoso e o movimento vagaroso, solene, da ramaria.

Respiro fundo, caminho devagar por entre as árvores enquanto sinto que aqueles músculos sempre tensos – nos ombros, nos braços, no ventre, em muitos outros pontos do meu corpo – se distendem gradualmente. A sensação de alívio é tão forte que provoca em mim um efeito semelhante ao da vertigem.
Um pouco mais adiante começa o pinhal – também ele não é um pinhal qualquer, antes é a nave do templo, o ponto central do espaço mágico. Julgo, ou melhor, estou certo de que é o centro da imutabilidade de Vale de Monges, um pequeno mundo de três quilómetros de largura que as águas do rio Mansil rasgaram milhões de anos antes de existirem a Aldeia do Retiro e a minha Casa da Tapada e os monges que lhe deram o nome; este vale misterioso, porque resiste às mutações do admirável mundo novo que nos bate à porta com grandes e obscenas punhadas. Estou certo, não me perguntem porquê, poderia jurar que essa estranha força de resistência emana daqui.
Os pinheiros – há-os mansos e bravos – são enormes, de troncos grossos. Mas a altura que atingiram torna-os esguios, bem proporcionados, e um jogo de luz e sombras dá-lhes a aparência de colunas. Os ramos mais altos tocam-se de árvore para árvore com um efeito visual semelhante à forma das ogivas góticas e as copas dos pinheiros mansos uniram-se para formar uma vasta abóbada.
Por isso eu chamo a este lugar a Catedral Verde. É um nome que nunca pronunciei em voz alta porque o meu sentido do ridículo mo impede. Em todo o planeta, não haverá mais que uma ou duas pessoas diante de quem eu falaria na catedral verde e, mesmo junto dessas, não o fiz até hoje. Contudo, em conversa íntima comigo mesmo, posso mandar o ridículo às urtigas. Esta é a minha catedral verde e o centro, o umbigo, a alma de Vale de Monges.
Estive muito tempo sem vir aqui, um ano, talvez, e o reencontro acorda vários sentimentos, dos quais o mais forte é o remorso, ou antes, a auto-recriminação. Por ter permitido que as tensões e o ruído exterior do mundo me fizessem adormecer, distraído e neurótico, e assim abandonei a demanda do meu Graal particular. Aquilo a que eu chamo (também nunca, ou raramente, em voz alta) a busca da santidade.
Era uma prioridade absoluta – e foi-se degradando até ao nível das pequenas dores recorrentes que nos incomodam de vez em quando a partir de uma certa idade e de um certo cansaço interior. Era o meu programa de vida e deixei-o decair até ao grau de ocupação de curtos tempos livres.
...Não. Estou a ceder ao vício da dramatização, da tragedização. A realidade não é assim tão sombria porque esta demanda continua a ser, e é-o desde há muito, uma obsessão constante, mesmo quando apenas latente. Porém, de que serve ela, se não for mais do que isso, se eu não der o primeiro passo?
Em que consiste exactamente esse primeiro passo, eis a grande questão. Talvez seja, sem mais, olhar à minha volta, sentir em vez de raciocinar, ouvir em vez de falar – ouvir a voz do silêncio de que falam místicos e iniciados.
(Caminho muito devagar por entre as colunas da catedral. Se quiser manter esta imagem terei de admitir que a brisa, ao tocar as agulhas dos pinheiros, será um órgão e que os salmos são cantados por um coro de pássaros, mas não será isto excessivo, barroco, mesmo – ridículo? Por outro lado, como estou só, o ridículo não existe. O ridículo só existe quando alguém nos vê)
...Ou talvez seja o contrário da simplicidade, talvez seja um multiplicar de gestos e de iniciativas. Se tomar o ioga como referência, talvez seja associar o hatha ioga à meditação.
...Ou praticar o jnana ioga, o ioga do conhecimento e da intuição, ou o karma ioga, o da acção – das boas acções, por muito que esta expressão soe a falso no tempo corrente.
...Ou, muito mais primitivamente: meditar, estudar as incursões científicas do domínio do paranormal no nosso domínio, ler todos os filósofos, todos os pensadores, todos os doutrinadores, conhecer todas as religiões.
(Será mesmo verdade que o ridículo só existe quando alguém nos vê?)
O que é surpreendente é que esta enxurrada de ideias não me desorienta nem me irrita. Aqui, neste momento, sinto apenas que tudo isto há-de resolver-se de algum modo, que aquilo a que eu chamo a busca da santidade, o meu Graal particular, está ao meu alcance, não sei como nem quando. E que hei-de ser capaz de construir dentro de mim aquele mundo-sonho do adolescente ressuscitado, onde os heróis podem cavalgar sobre pradarias limpas e em florestas densas regadas por chuvas tépidas.
É este o efeito que sobre mim exerce a catedral verde de Vale de Monges.
Fecho os olhos para sentir melhor a vibração deliciosa que me sacode. Respiro fundo, bem fundo, para me encher com o ar perfumado de pinheiros, aquecido pelo Sol.


João Aguiar, A Catedral Verde

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Conhecer DIAS DE MELO

[…]

Meu Pai tinha trabalhado na América debaixo da barba alheia, debaixo da barba brutal dos bossas, cada bossa o rosto que se via do patrão milionário em que ninguém punha a vista em cima e a quem todos serviam, os imigrantes a meio peso, linguagem do México, o mesmo é dizer a meio dólar por dia (trabalhador americano de nascimento, já nesse tempo, finais do século passado, princípio deste, nem por trinta dólares por mês o apanhavam), os emigrantes pediam trabalho, trabalhavam como escravos e não reclamavam na soldada, e eram tantos, nem meu Pai conseguia imaginar quantos, de todos os países do velho mundo, a trabalhar para cada patrão milionário, muitas vezes um patrão que começara por ser também imigrante e trabalhador, um trabalhador sem escrúpulos, e concluía meu pai ser preciso o trabalho de dezenas de trabalhadores para, de um trabalhador sem escrúpulos tornado patrão modesto, fazer um pequeno milionário, maior, cada vez maior, à medida que, de pequeno, se ir tornando grande até que acabavam por ser multidões de trabalhadores escravos a trabalhar para o pequeno cardume dos poderosos multimilionários donos do mundo, e infinita a multidão dos trabalhadores que os servem, arrastando-se na lama da miséria, para que eles se mantenham no fausto da mais escandalosa opulência. Com isto metido na cabeça se arrebanhou com os trabalhadores que entendiam que isto não estava certo e que se aventuravam a lutar para que deixasse de ser o que sempre fora. Eram muitos com ele na América, na Califórnia, milhões, muitos milhões no mundo inteiro.
Quem se mete nestes sarilhos nem sempre consegue trabalho com facilidade, e sem trabalho, mais ou menos assegurado, não se arrecada muito dinheiro. Daí que, no regresso à ilha, meu Pai não fosse o calafona do costume, forrado de dólares e presunção pesporrente. E aqui uma coisa: na verdade, ao que dizem, os calafonas de volta, se traziam mil dólares consigo já era muito bom – e, a ganharem meio dólar por dia, espanta como tanto lograram arranjar. Tanto… Pouquíssimo na terra da América, aqui, no meio da nossa escassez, até dava para deitarem figura por uns tempos. O que trouxe meu Pai, não sei. Deu-lhe para comprar uns bocadinhos de terra e, penso já o ter dito, reabrir a loja tristemente encerrada pelo pai e fundada pelo avô brasileiro por meados do século passado, talvez, hoje, a mais antiga do Pico, isto tenho a certeza de já ter dito.
Segue-se que, lá por, no regresso da América, ter comprado uns palmos de terra, coisa pouca, e se ter estabelecido com fazendas e calçado na loja que fora do pai e do avô, nunca por nunca se teve meu Pai na conta de mais que ninguém, nunca por nunca deixou de se ter na conta de igual a todos, fosse um pobre de pedir ou qualquer de mais aquela, assim, e não como comerciante, pequeno comerciante, mas comerciante, que uns furos acima dos demais na conta de burgueses da pequena burguesia rural se têm os comerciantes das aldeias, mesmo, ou mais que todos, os vindos da maior das misérias, alguns os conheci e conheço. Com isto, nem minha Mãe por ter nascido como nascera e ser filha de quem era, nem meu Pai por ter na América penado o que penara, vivido o que vivera, sido o que fora, jamais se consentiram considerar, muito menos que nós, os filhos, nos permitíssemos considerar como pessoas que não fossem da família os que nos ajudavam nos nossos trabalhos. Eram-no, pelo sangue, meu primo João Silveira, por afinidade o Tio Jorge, tanto como eles, sem laços de sangue nem de afinidades, além do José Chíchero, o Armando (um dos homens mais inteligentes que tenho conhecido, foi o primeiro a me abrir os olhos da sensibilidade e do pensamento e, de uma vez por todas, para a poderosíssima força da estupidez e do poderio do dinheiro que nos subjuga aqui e no mundo inteiro)…
- …
- Não estou vendo as coisas com olhos avinagrados, estou a vê-las como, por mais que digam ou deixem de dizer, elas tardam em deixar de ser. Adiante.
- …
- … o Armando, o Manuel Madeirinha, o Manelinho de S. Miguel, o ti Manuel d’Ávila Moita (do ti Manuel d’Ávila Moita, Avô da minha defunta companheira, também tenho muito que contar, fica para outra), todos eram, em nossa casa e em pé de igualdade, com ou sem laços de parentesco, pessoas de família.
Quando comecei a trabalhar na terra, andaria pelos oito, nove anos, o mais assistente de todos, e por longos anos o foi, era o José Chíchero. Vinha connosco dois dias certos por semana, disse-o, em sua companhia trabalhava, a ele me afeiçoava, e afeiçoado fiquei para sempre, sabia lidar comigo, tratava-me de igual para igual, nem que fosse eu pessoa crescida, da sua idade, era paciente, explicava-me o que lhe pedia que me ensinasse, fosse o que fosse, para ele não havia coisas feias em que se não podia falar a crianças, assim, a seu modo com seriedade, me explicou coisas do sexo, do sexo e do amor, dantes só tinha ouvido rapazes mais velhos, um pouco mais velhos, disto falarem de maneira parva e canalha, vocês sabem como é que, nisto, tudo continua na mesma. Contei-lhe o que sentia pela Rosa do Mirante, envergonhado, a gaguejar, sem saber bem dizer o que sentia, veio, com o tempo, a ser a minha primeira grande paixão, o José Chíchero ouvia-me sem se rir, encorajava-me a falar, disse-lhe tudo o que lhe tinha para dizer lá conforme pude, aconselhava-me como se me não estivesse aconselhando, com um sorriso bom e palavras mansas:


- Isso é amor. O amor começa por isso, pelo bichinho com comichão. Mas o amor não é só isso, é muito mais. É uma ferida, ao mesmo tempo uma flor dentro da gente. A raiz e o sangue da vida. Não há nada mais importante que o amor. Tanto que, sem o amor, não há vida e a vida que existe deixaria, sem amor, de existir. O homem nasceu para amar e para viver no amor do homem. Por isso a vida do homem sem a mulher, o amor da mulher, a seu lado, nem chega a ser vida, não tem sentido, nem vida da mulher o é, o tem, sem o amor do homem consigo. Vidas assim são vidas sem vida, vidas mortas como qualquer costa deserta de onde nunca se avista ao largo uma vela branca, o fundo branco de um navio no horizonte deserto do mar.

Nem sei como podia o José Chíchero falar desta maneira, mas falava quando falava de amor. As palavras, as frases, não seriam estas, p-á-pá-santa-justa, não podiam ser, era um homem simples, nem sabia ler, nem sequer assinar o seu nome, agora a ideia, essa, era, sem tirar nem pôr, eu, vocês bem vêem, com a idade que no tempo tinha, começara a trabalhar na terra com o José Chíchero aos oito, nove, iria nos doze, treze, nada entendia de tudo aquilo como deve ser aquilo entendido, embora aquilo me entrasse no coração (por muito estranho que pareça, há coisas que nos tocam, entram no coração, sem que a gente as entenda, ou julgue que as não entende sem que a gente saiba porquê, ou julgue que não sabe porquê, sei lá, talvez pela imensa força da imensa verdade que carregam consigo) e no coração me ficasse para hoje o entender em toda a sua extensão à custa de experiências várias, por mim sofridas, nem todas de boas recordações.

[…]

Dias de Melo, Reviver: Na Festa da Vida a Festa da Morte
(Calheta de Nesquim (Pico), 08.04.1925–Ponta Delgada (S. Miguel), 24.09.2008]