quarta-feira, 4 de junho de 2008

Conhecer MANUEL POPPE 2


COM AS MÃOS ATADAS

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- Marta!

Alguém chamava, lá dentro. Não respondeu, mergulhada na vista da janela que abria para o vale. Compôs o cabelo, que se lhe enredou nos dedos. Pousou as mãos no regaço e deixou-se ficar, recostada na cadeira de baloiço, inerte, esquecida, indiferente. Não queria pensar. A neblina, a soltar-se da terra, dos casais, das hortas, cobria quase tudo. Pouco distinguia, a não ser as luzes que se acendiam, aqui e ali. O ruído era o das crianças, que corriam no jardim, das amigas que as vigiavam, das criadas, na cozinha, muito longe. Nem ela sabia, nem ouvia. Só queria aquele momento roubado e o campo sem fim. A luz crepuscular, doce, rosa dentro da bruma, leve, imponderável, livre, enquanto casas, árvores, volumes escureciam, recuperavam a forma e, depois, se iam perdendo, com o chegar da noite.

- “O vestido…”

Qual vestido? E sorriu: o vestido de popelina da mesma cor, que o pai lhe oferecera, em criança? Há tantos anos! Em plena adolescência, quando corria por aqueles atalhos, subia às árvores e arranhava as pernas, nas roseiras bravas, se deitava no chão, a admirar as estrelas cadentes de Agosto, e ninguém a encontrava, à procura dela e ela a esconder-se? Sozinha, a cantar baixinho, “meu amor é marinheiro”, “da minha janela à tua…” E de repente tinha medo e punha-se a tremer. Dominava-se e começava a andar devagarinho, entre as sombras e as pedras, de volta à casa. “Uh!”, gritava, a assustar os que a buscavam, ao esbarrar com eles. E ria, aliviada. Voltava a casa murcha, impaciente consigo por ceder. Ela é que fora ter com eles.

- “Sempre…”

Então, as suas pernas eram duras e o corpo não lhe pesava.

- Olá…

A miúda surgira de repente e espreitava-a, a medo.

- Olá… - repetiu, mas logo desatou a fugir, com a outra que se encostara à ombreira da porta.

Doeram-lhe as gargalhadas, que não sabia se eram de troça ou brincadeira. Inclinou-se e tentou ver-se nos vidros da janela.

- “Cara de pau…”

Passou as mãos pelo rosto, a seguir as linhas das rugas, a palpar a pele seca.

- “O creme… Apanho muito sol…”

O sorriso amargo vincou-lhe os traços. E ironizou:

- “Nem as crianças me querem! Estou velha!... Velha aos sessenta anos?”

Filhos? Netos? Estavam lá dentro, falavam, gritavam, divertiam-se. Longe. O marido? Cansara-se dela e ela cansara-se dele. Podia vir, que não diria nada, mesmo que falasse. Respeitava-o? Respeitava as pessoas. Por aí não vinha mal ao mundo. Nenhum mal. Talvez fosse pior: não havia nada. Cansara-se de o seguir, talvez se tivesse cansado de os seguir a todos, fartara-se. E não se assustou com o pensamento: porquê? Que acontecera ao entusiasmo, a quanto dera? Aceitara-os de olhos fechados, entregara-se-lhes. Sacrificara-se. Ao princípio não se queixara. Parecia-lhe natural e era natural, porque as coisas aconteciam intensamente. Ardentemente. O seu corpo vibrara. Mas, pouco a pouco, por isto, por aquilo, esmorecera. E, agora, desistira? Ou não soubera querer, sempre o medo, a angústia, que disfarçava mas nunca vencera. Não se queixava, amara-os. Continuava a amá-los. Hoje, porém, as coisas tinham mudado: o medo transformara-se em angústia, que a oprimia. Tinha de a enxotar. A angústia dava cabo dela. Pouco a pouco, todos os dias, e sentia-o, fugiam-lhe as forças, sufocava. Reagia aos arranques, numa espécie de estertor. Não queria desprezar-se; não podia. E, no entanto, sabia, claramente, que nunca fora dona de si própria e queria sê-lo, ao menos uma vez. Um dia! Mas teimava em viver ali.

- “O tempo…”

Sim, o tempo, que roía, que degradava, que tudo atirava por terra. E não se mexeu. Escurecia. Não valia a pena acender a luz. Entretinha-se com as que brilhavam, intermitentes, lá fora. Levantara-se uma brisa muito leve, que refrescava. Envolveu-se no xaile de lã, que trazia aos ombros.

- “É o fim do verão…”

Caiu na modorra, acordava e adormecia, nunca adormecia. E, de repente, a paisagem andou vinte anos para trás. Já não era o vale, nem casais, nem hortas, que via. Reconheceu a montanha onde se perdera. Os cimos ainda cobertos de neve, as abas, cortadas a pique, o silêncio. Era outro Setembro e visitara, em grupo, o Norte de Espanha. Naquela manhã, durante o passeio, insensivelmente, fora deixando os companheiros para trás e viera ali parar, não sabia onde. Que importava? E repetiu-se o que a imobilizara: o susto, o vazio, a vertigem.

O coração, aos saltos, parecia que ia rebentar. E os olhos fixaram a águia, que girava devagarinho, muito longe. Esquecera tudo. As únicas referências eram as escarpas e a águia, presa do azul gelado do céu. Não fazia nenhum esforço para se lembrar, para compreender. O que fazia ali não lhe interessava. Tinha medo de saber. Ninguém devia saber. Era livre. Os outros não existiam. Não podiam travá-la ou ensinar-lhe o caminho. Ficou quieta, à espera. Sorriu à neve imaculada. Não queria pisá-la. Lembrava-se de haver visitado umas grutas, atravessadas por um riacho e com o tecto repleto de estalactites.

- “Se lhes tocar, morrem. Não crescem mais…” – explicara o guia.

E pensou que, se continuasse a andar, aconteceria a mesma coisa: aquele momento morreria. Não queria voltar atrás. Era ela. E abandonou-se à vertigem, ao arrepio que a atravessou, lhe desceu dentro, a fez estremecer, gozar a própria solidão. As fontes latejavam-lhe, sentiu os seios crescerem, rijos, o corpo tenso, os lábios entumecidos. Ia morrer? Não aguentava mais? E se morresse? Que importância tinha? Nunca o que viesse depois seria aquilo. Respirou fundo, encheu o peito, desafiou a neve, as montanhas, a águia impassível, lá no alto. Não tinha medo: nada poderia dobrá-la. Ah! Guardar a plenitude! Para sempre!

- “Marta!”

Chamavam por ela? Voltavam a casa? Acordou, sobressaltada, e ficou a escutar. Sim, outra vez, as vozes… Cerrou os punhos. Hirta, apertou os dentes. Não os queria! Mas eles falavam, riam, aproximavam-se, ouvia-lhes os passos no corredor. Rezou baixinho, a pedir que não entrassem.

Manuel Poppe, in “Um Inverno em Marraquexe”

3 comentários:

Unknown disse...

Agradeço os textos maravilhosos que aqui nos traz.

Elisabete disse...

Ainda bem que gosta.
Eu é que agradeço a sua visita.

Unknown disse...

Conheço o M. Poppe do Jornal de Notícias.
Não conhecia o seu trabalho literário.
Obrigado por mo dar a conhecer. Tenho gostado.