sexta-feira, 9 de maio de 2008

Conhecer MANUEL POPPE 1


A Acácia Vermelha
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Foi por pouco tempo. Um mês. Lembro-me de quando me apareceu, a rir-se, à procura de trabalho. Eu viera contratado para verificar as condutas de água que abasteciam a capital. Era um país do golfo da Guiné, muito pobre e com dificuldade em organizar-se depois da independência. Perguntei-lhe:
- O que é que sabes fazer?
- Tudo – respondeu-me, às voltas com o corpo, que balanceava, livre, as mãos agarradas à boca.
- Como é que te chamas?
- Ednilza.
Acertámos o preço e ficou a trabalhar em minha casa. Chegava às seis da manhã – todos se levantavam cedo – e ia-se embora ao pôr-do-sol, quando eu a levava no jeep, carregado de sacos, os restos do dia. Atravessávamos a cidade às escuras e subíamos uma rua íngreme de terra batida, onde havia pequeninas bancas, iluminadas por candeias improvisadas, de lata.
- É ali – dizia.
E entrávamos no atalho. Ficava a dizer-me adeus, junto às escadas que davam para o único andar da casa de madeira assente em barrotes e com um telhado de zinco amolgado. Era um vulto, no meio do mato, com o vestido branco e o lenço amarelo. Os coqueiros agitavam-se, em volta, e luzes brilhavam, por detrás das cortinas de pano.
Um dia, apareceu-me com a irmã e uma sobrinha.
- O doutor não precisa?...
Por que não? A vivenda que eu alugara era grande, quartos amplos, abertos sobre um jardim com mangueiras, bananeiras, goiabeiras, e eu gostava de a sentir habitada, a ouvir o mar, em frente. Mas foi sempre ela quem me serviu e reservou isso para si, a preocupação com a minha saúde, com o meu bem-estar.
Uma vez, disse-me:
- O doutor não gosta de mim…
- O quê?
Aquela era a hora em que eu costumava sentar-me, na varanda, a olhar para o jardim e a ver cair a noite. O crepúsculo chegava devagarinho, as mangueiras escureciam, com a folhagem densa, a caramboleira deixava o dourado dos frutos.
- Gosta de mim?
- Claro que gosto!
Nunca tinha pensado nisso. Agarrei-lhe a mão húmida e puxei-a.
- Não acreditas?
Ela deixou-se estar e, depois, libertou-se. Ficou parada, entre cá e lá, encostada à balaustrada, com as pernas cruzadas. Demorou. Não tirava os olhos de mim. Era muito forte o olhar e desviei o meu.
Passaram os dias. Até que aconteceu. Tinha ido ao sul da ilha e voltei tarde, já de noite. Vi-a enforcada, presa de um braço de mangueira. Chamei os polícias, que a levaram, um corpinho exil, com as pernas esticadas e o peito rígido a levantar-lhe a camisa.
Em frente do escritório da minha casa, havia uma acácia vermelha, que floriu, nessa altura.
Eu vi-a, julgava vê-la passar, por debaixo da árvore. Às vezes, parecia que se virava para a janela.
- Tão elegante… - pensava.
A minha cozinheira apanhou-me assim e desabafou:
- Nunca lhe contaram? Ela foi uma infeliz. Andou, sem eira nem beira, desde que nasceu! O pai? Não quis saber dela, tinha mais filhos e outras mulheres. A mãe? Aguentou, enquanto pôde. Também tinha outros. Não sabe como é? Ela é que foi à vida. Aprendeu depressa. Mas isso era o menos. O pior era o resto. Nunca os viu? O que é que o doutor andou cá a fazer? Só as minas? Só a casa? Os criados? Nós!... A varanda? Nunca os viu, os brancos, que voltaram, a pagar, a pagar! A enchê-las de roupas, e a aproveitarem-se. A comprarem. Não as deitam fora. Têm dinheiro: usam-nas e até as protegem. Dão-lhes de comer. Depois, esquecem. Elas é que sofrem. Ela é que sofreu. A sua! Passou de mão em mão.
A raiva sufocava-a.
- Compraram tudo…
- Ela? Qual?
- A que o doutor não quis.
E troçou:
- O doutor andou sempre distraído…
Não sabia responder-lhe. A verdade é que não tinha querido nada. Viera por pouco tempo. Percebera depressa que aquilo era um pântano, lama a sujar a beleza da ilha. O hotel, a cair de podre, o bar do Alípio, com o gerador que dava cabo dos ouvidos, os mosquitos e aquela gente, que dizia que ajudava e sugava, grosseira, agressiva. Ainda hoje, passados tantos anos, os vejo: suados, as camisas abertas, a encostarem-se uns aos outros. E, de repente, levantavam-se, metiam-se nos carros, e iam desenfreados, pelas escadas esburacadas, até se cansarem e se abraçarem e rebolarem nas praias. Pensei, sempre, que estavam a mais, que nunca viram nada. Contaram-me coisas, a tentarem envolver-me.
- Na despedida do Bidarra, tiraram-lhe a língua para fora. Estava tudo bêbado! O “macaco” pendurou-se do candeeiro! Felizmente, agarraram-no a tempo…
Eu conhecia o “macaco”: era um mestiço, que a colónia europeia tolerava. Quando nos cruzávamos, eu desviava os olhos: custava-me o seu ressentimento, o desespero de andar na cola dos brancos. Diziam que era filho de um roceiro, que o empregara como capataz.
Quantas vezes fugira daquele mundo infectado e me refugiara na vivenda! Onde a encontrava.
- O doutor já tomou o remédio?
Eram as pílulas para a malária, trazia-mas num tabuleiro leve, quase uma folha, equilibrado nas mãos pequeninas, seguro pelos dedos magros, doirado, com figuras geométricas de madeira preta, e olhava-me, à espera. Depois, girava, a saia de popelina a roçar-lhe os joelhos, os olhos a brilharem, e dizia, contente:
- O doutor esquece-se sempre…
Agora, a minha cozinheira gorda, de quem nunca esquecerei os olhos vivos, acusava-me.
- O doutor deixou-a sozinha.
Acabada a missão, fui-me embora. Às vezes, lembro-me de Ednilza, no meio das árvores, a dizer-me adeus. E , à noite, oiço os coqueiros, quando o vento sopra.


Manuel Poppe, in "Um Inverno em Marraquexe"


1 comentário:

Unknown disse...

Muito bonito este conto e triste, ao mesmo tempo.
É bom este espaço. Obrigada.