sábado, 17 de maio de 2008

Conhecer MÁRIO DE CARVALHO

Mário de Carvalho
A SALA MAGENTA
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Que queria Maria Alfreda de Gustavo? Talvez pouco mais do que um amante que lhe ia preenchendo algumas noites, com demonstrações compósitas de lucidez e de ingenuidade e derivava para o mundo do cinema, para o mistério das formas, para os labirintos da imaginação. Que queria Gustavo de Maria Alfreda? Que ela, enfim, parasse, que o escolhesse de vez, contra um passado preenchido por outras presenças, que supunha quase todas cativantes ou perturbadoras, e também contra um presente desassossegado de interrupções, instabilidade, devassas, sinais de alerta e de perigo. Gustavo tinha de reconhecer – teve de lhe dizer – que a amava, muito a contragosto, como alguém que se submete, num supremo despojamento, esperando em troca paz e gasalho. Maria Alfreda nunca retribuiu a declaração, apenas a recebeu, com sinais de pensativa benevolência que não anularam em Gustavo uma acabrunhada sensação de derrota, antes acentuaram o mau passo de ter dito o que não devia.

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Era um realizador de cinema de um pequeno país, com uma minúscula filmografia, pouco dinheiro, falta de adestramento, soluções de continuidade nas experiências e nas carreiras. Era um cinema “cozido à linha”,[…].



Gustavo Miguel Dias, cineasta ou realizador de cinema (como preferia), é vítima de um assalto, que o obriga a mudar-se para a casa da irmã, Marta, na aldeia de Grodemil, junto da Lagoa Moura, com a sua “perna engessada e um par de canadianas emprestadas”.
O retiro forçado proporciona-lhe a retrospectiva da sua vida profissional e afectiva.
É constantemente assaltado pela memória do seu relacionamento com Maria Alfreda, que o usou de forma cruel, sem nunca se entregar verdadeiramente, fazendo com que, ainda agora, se sinta desprezado, magoado e humilhado. Maria Alfreda traiu-o, deixou-o e, soube-o mais tarde por um amigo, morreu. Mas ele continua a sofrer e, também, a lembrar a sala magenta, em cujo chão faziam amor, conversavam, trocavam confidências, enquanto a brisa ondulava os cortinados e fazia tilintar um espanta-espíritos. A sala magenta que o atraía e lhe anulava o ânimo como o antro duma feiticeira, onde uma pequena pistola prateada adornava a papeleira de tampo cilíndrico, intrigando-o pelas interrogações que lhe suscitava.
A par deste amor que o seduz e não o satisfaz, tem algumas aventuras que lhe causam uma certa náusea, mas a que não consegue dizer não. Só fracassos!...
Como realizador, sente que não fez nada de fundamental, de novo. Agora, todos lhe viram as costas. Esquecem-se dele, inventam desculpas enquanto promovem jovens inexperientes. Sente-se incapaz de novos projectos e compreende que, também aqui, fracassou. É, portanto, um fracassado sem futuro.
E Marta? Uma mulher sensível, delicada (ao ponto de, para não magoar o irmão, lhe dar cinquenta euros que diz, mentindo, ter encontrado num bolso das calças dele), capaz de grande respeito pelos outros, sofredora em silêncio e em privado. Foi abandonada pelo marido e o filho, Cláudio, engana-a, fingindo continuar os estudos mas enveredando por uma vida no submundo nocturno de Lisboa.
Gustavo, que a si próprio se considera um cínico egoísta viciado em exibições de insensibilidade, começa a ser sensível à presença e aos problemas da irmã, ao mesmo tempo que repousa, tranquilo, no cuidado e protecção que ela lhe dá: a ingenuidade protectora de Marta, àquela hora da noite, fazia renascer uma sensação de conchego que ia impregnando o todo em volta, devagar, como uma névoa benigna tombando.
Mas o sentimento de fracasso é tão forte que, ao invés de aceitar uma vida calma ao lado da irmã como eu previa e desejava, se precipita na Lagoa Moura, numa noite em que ela se ausenta, pensando que a única maneira de escapar ao terror era entrar nele. Arrepende-se e conseguem salvá-lo, voltando para os braços da irmã que trata dele. Aqui a acção suspende-se. Talvez para que um dia, mais tarde, Mário de Carvalho possa continuar a história.

1 comentário:

Unknown disse...

Já li e gostei muito. Os afectos, como sempre, complicados...