quinta-feira, 22 de maio de 2008

Conhecer ANTÓNIO RAMOS ROSA e MANUEL MADEIRA

Cartas poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira


Nona carta a M.M.
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No nosso tempo havia cegos e surdos que falavam
e nos queriam cegar e ensurdecer.
Mas nós mantínhamos nos pulsos a tensão vertical
de um fogo verde de uma outra vida.
Era um horizonte de palavras novas, de árvores reverentes.
Escrevíamos panfletos que às vezes nos fugiam dos bolsos
em revoadas que se confundiam com as aves.
Acampávamos em pinhais, cantávamos e dançávamos,
saudando o sol de um novo dia
e às vezes a polícia surpreendia-nos
com as metralhadoras aperradas contra nós.
Devorámos livros proibidos apaixonadamente
reunidos em exíguos quartos ou solitariamente.
Não importa se muitos se enganavam adorando um déspota como
um deus,
porque a verdade estava na sua oposição
à tirania que nos roubava o sol,
a liberdade e a justiça da palavra viva.
Vivemos duramente com obstinada paixão
mas vivíamos solidários e lúcidos na sombra
e a fraternidade era a nossa força e o prémio da nossa luta.
Vencemos finalmente, mas a madrugada da nossa liberdade
foi apenas um momento. O que se seguiu depois
é um sistema que não sabemos como combater
porque a sua teia é anónima, de uma violência esparsa
que nos impede a defrontação
com os seus disfarces e os seus estratagemas.

Nona carta a A.R.R.
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Era um tempo medonho que nos apertava os pulsos e tolhia os
movimentos
mas simultaneamente amadurecia em nós uma ânsia de revolta
que nos agitava em todos os momentos
Os livros chegavam por invisíveis correios
e eram escondidos debaixo do colchão
ou enterrados dentro de caixas entre cepas no quintal
para que nem as formigas sonhassem
que ali palpitava um sopro de liberdade
Respirávamos aperreados entre a pistola e a hóstia
e o sol entrava varado em quadradinhos pelas secretas frinchas do
Aljube e de Caxias
Mas dentro de nós habitava um insubmisso grilo
que fazia das trevas um violino louco estilhaçando os arcos do
silêncio
Nas clareiras abertas em florestas fechadas
dávamo-nos as mãos cantávamos e dançávamos
e o amor entrava-nos no coração
trazido na ternura dos olhos de mocinhas flexíveis de verdes cinturas
oscilando ao ritmo dos sonhos comuns

Hoje a liberdade conquistada a pulso
finalmente livre esconde em si as grades
que não distinguimos e em que tropeçamos
como se vivêssemos de olhos nublados
O sublime desejo de felicidade fraterna vivida em plenitude
nos espaços abertos da natureza viva nos campos floridos no ouro
das areias abraçando o mar
é substituído pela crença impura nas falsas virtudes
do consumo selvagem em favos de cimento
A fuga possível é para o mundo recôndito da imaginação
que talvez dê frutos noutra encarnação…

1 comentário:

Unknown disse...

Grandes algarvios e grandes poetas.